- Vamos começar aqui
Admito que o caminho que a seguir lhes proponho percorrer, já desde o início, poderá parecer um pouco desconcertante, mas peço que continuem avançando comigo sem os preconceitos iniciais que podem gerar intuitivamente, e tentarei – fundamentadamente – responder à pergunta do título.
Muito se tem falado dentro do Direito Aduaneiro, e particularmente dentro do Direito Aduaneiro Sancionatório, da “carga da prova”, da “inversão da carga da prova” e mais intensamente da “carga dinâmica da prova.”
No entanto, entendo que temos admitido que sejam transferidos conceitos iusprivatistas, de contextos processuais adversariais, para procedimentos administrativos e processos judiciais de natureza sancionatória, onde não são aplicáveis.
Sem dúvida, existem diferenças importantes entre os processos judiciais por infrações aduaneiras e os procedimentos administrativos por infrações aduaneiras, assim como em relação aos procedimentos correcionais (ou também denominados disciplinares).
Evidentemente, nos primeiros, ao ser substanciada a averiguação da existência dos fatos que podem ser subsumidos em tipos infracionais diante de um terceiro imparcial, em um processo judicial adversarial, determina-se uma separação entre o sujeito que exerce a ação e quem deve resolver. Assim, neles, um sujeito assegura (alegando) a existência de fatos configurativos de uma infração aduaneira e sua vinculação a um sujeito, e portanto no processo deverão resultar acreditados os referidos fatos, para com isso poder pretender uma condenação do indiciado como autor de tais fatos. Enquanto isso, será outro sujeito quem deverá resolver, com base na necessária acreditação da ocorrência dos fatos e a relação destes com o sujeito a quem se lhe atribuem, ou impor a este a consequência sancionatória legalmente prevista, no grau que também se determina nas normas sancionatórias.
Em contrapartida, nos procedimentos administrativos aduaneiros –por infrações aduaneiras ou por faltas administrativas (correcional ou disciplinares) – quem deve determinar a ocorrência dos fatos passíveis de configurar uma infração aduaneira ou uma falta administrativa, e sua vinculação com um sujeito, e, verificado isso, impor a consequência jurídica estabelecida pela legislação aduaneira, no grau também estabelecido nesta, é o mesmo sujeito, a Administração Aduaneira.
No Uruguai, a averiguação dos fatos que podem determinar a configuração de uma infração aduaneira, e eventualmente, a imposição da sanção vinculada a essa infração, vai ser substanciada na via judicial, isto é, perante o Poder Judiciário2. Isso resulta assim em todas as infrações aduaneiras, salvo o caso da infração aduaneira de Contravenção3, a qual se substancia na via administrativa, perante a Direção Nacional de Aduana, que é quem pode impor a sanção por essa infração.
Por sua vez, na maioria dos outros países da América Latina (incluindo o Brasil), a averiguação dos fatos que configuram uma infração aduaneira se substancia na via administrativa, pela Administração Aduaneira, que é quem pode impor a sanção correspondente.
Assim, no processo judicial por infrações aduaneiras, naturalizou-se atribuir às partes a “carga da prova”, e com isso, suas consequências. Mas além disso, também se refere à “carga da prova” da Administração Aduaneira no procedimento administrativo por infrações aduaneiras.
Isso nos leva a perguntar: Pode-se falar de “carga da prova” em matéria de Direito Aduaneiro Sancionatório?
- Sobre os atuais questionamentos à “regra da carga da prova”
Parece necessário dar um passo atrás para poder verificar se ainda pode resultar relevante a regra da carga da prova em matéria processual civil. Substancialmente, se como regra resolve de alguma maneira a função inicialmente estabelecida para que fosse operativa no processo de averiguação da verdade, na resolução dos conflitos submetidos a um terceiro.
Sem prejuízo de sua origem remota e sua evolução4, como anota NIEVA FENOLL, a aparição autêntica científica da carga da prova ocorre no início do século XIX. Em sua função inicial a carga da prova determina quem deve provar ou realizar a prova, e sua manifestação ocorre através de uma regra que uniformiza todos os casos a uma única declaração: deve provar aquele que afirma um direito, e deve provar sua extinção aquele que o nega. Nesse sentido, a regra da carga da prova determina que cabe ao autor demonstrar o fato que alega como fundamento de sua demanda, enquanto o réu deve provar o fato que constitui o fundamento da exceção5.
No entanto, a conformação da regra da carga da prova estava em linha com as diretrizes do sistema legal de avaliação, o qual, ao introduzir o sistema de livre avaliação da prova, lhe faz perder a relevância original, e passa a importar já não quem aporta a prova do fato, mas conhecer a realidade, sem importar quem aporta a prova para a averiguação do fato (princípio de aquisição da prova).
Nesse sentido, seguindo a obra de ROSENBERG, deixa de ter relevância quem alega um fato ou o prova (inclusive admitindo que o juiz fosse quem procurasse a prova do mesmo), e passa a interessar a averiguação da veracidade dos fatos, o que será denominado “carga objetiva da prova”, e que depois será redimensionada como uma distribuição efetiva do risco de não ter conseguido prová-lo, o que encontrará sua resposta no sujeito que pretendia a consequência jurídica desse fato6.
Diz TARUFFO, que a regra sobre a carga da prova não encontra uma aplicação efetiva no curso do processo e não afeta realmente a iniciativa probatória das partes. Por isso determina que somente se pode falar de uma carga de prova objetiva, na medida em que a mesma só encontra aplicação na decisão final, e constitui uma regra de julgamento que o juiz deve aplicar nessa decisão.
Isso desloca a regra da carga da prova para o final do processo, e apenas para o caso em que, avaliada a prova, não se possa ter certeza da existência dos fatos objeto daquela. Assim, essa regra deverá ser cumprida pelo juiz quando, analisado o material probatório produzido no processo, e não havendo encontrado certeza sobre a existência ou inexistência de um fato que é objeto da prova (isto é, que não o tem por provado), deverá fazer recair a consequência da orfandade probatória em quem tinha a carga de provar a existência ou inexistência do fato, segundo a referida distribuição da carga da prova, a qual foi estabelecida previamente pela Lei.
Como adverte TARUFFO, a carga da prova tem por objetivo regular o comportamento das partes individuais no contexto dinâmico do processo, e desempenha uma função epistêmica fundamental dirigida a garantir que a decisão final se baseie em uma determinação verdadeira dos fatos principais da causa, e adicionalmente, tem uma função publicista consistente em estabelecer um critério segundo o qual o juiz deverá alcançar a decisão final mesmo na ausência de prova de tais fatos7.
No entanto, a regra da carga da prova não se aplica quando acontece o que ela prevê, mas sim o contrário. A regra atua como uma norma de remissão. Assim concebida a carga da prova, ela não determina quem tem a obrigação de produzir a prova, mas sim em quem recai o risco de que ela não se produza.
Isso leva NIEVA FENOLL a concluir que não leva a uma “distribuição de cargas”, nem mesmo uma questão de “cargas”, mas que simplesmente se está diante da averiguação dos fatos no processo, que é produto somente da valoração da prova e não depende de “carga” alguma.
Assim sendo, se os fatos estão provados, será declarada sua existência; se não estão provados, sua inexistência, com a consequência legal de acolhimento ou não da pretensão que isso implica.
Com isso, com a regra ou sem ela, o resultado seria o mesmo, somente diante da prova da existência do fato poderá ser considerado provado, e aplicar a consequência jurídica ligada a esse fato.
Enquanto o processo é o âmbito onde se pretende a aplicação de uma norma – norma que tem como antecedente a existência de um fato, que se liga a um consequente –, se não se encontra provado o fato não se poderá ditar uma resolução que aplique a consequência reclamada.
Em definitivo, o que deve ser buscado é a correta aplicação do direito aos fatos do caso específico. O que demonstra que a regra da carga da prova se mostra desnecessária ou inútil no sistema de livre valoração da prova8.
Se essa é a situação nos Processos Civis, de sistema adversarial, devemos observar com detalhequais são as particularidades dos processos judiciais e dos procedimentos aduaneiros de natureza sancionatória em relação à prova.
- A verificação da existência dos fatos infracionais e a aplicação de sua consequência sancionatória
Cabe lembrar que toda norma jurídica condiciona a produção de seus efeitos à existência de determinada situação de fato9. Assim, pode-se dizer que uma norma jurídica é uma enunciação que correlaciona fatos ou condutas com soluções. Dessa forma, a norma determina que dado um “suposto de fato” se atribui uma “consequência jurídica.”
As normas sancionatórias não são uma exceção. Mesmo quando o binômio infração-sanção se pudesse apresentar em duas normas diversas, articulam em conjunto, de tal forma que a configuração da infração estará condicionada a que os fatos descritos no tipo tenham ocorrido. Entretanto, a sanção poderá resultar aplicável somente se puder ser determinado que se configurou a infração.
Convém esclarecer que nem todas as condutas que podem ser contrárias a uma norma aduaneira – portanto, antijurídicas – serão infrações aduaneiras, uma vez que algumas transgressões, pelo grau de afetação à ordem jurídica aduaneira podem ter sido tipificadas como delitos; e outras, em troca, por sua pouca transcendência ou lesividade, podem não ter relevância para serem contempladas pelo legislador como condutas puníveis, por não afetar de maneira relevante o bem jurídico que se pretende tutelar pelo elenco de delitos e infrações. No mesmo sentido, algumas outras condutas, mesmo sendo antijurídicas, transcendentes e lesivas, podem não ter sido previstas pelo legislador, e portanto, são atípicas, e não serão alcançadas por uma sanção10.
Considerando isso, pode-se dizer que a forma de determinar quais são as condutas passíveis de constituir uma infração aduaneira estará dada pela revisão daquelas condutas que resultem descritivas nos tipos infracionais vigentes em cada país.
Além disso, para que um “fato” possa ser qualificado como um “fato infracional”, e que posteriormente possa ter como consequência a aplicação de uma sanção, requer a existência de “eventos” anteriores e posteriores.
Nesse sentido, para que o descumprimento de um determinado preceito normativo aduaneiro – portanto transgressor da legislação aduaneira – tenha como consequência a aplicação de uma sanção, devem ser cumpridas três condições, a saber:
- Que a conduta contrária a esse preceito normativo tenha sido selecionada por uma norma de nível legal com o propósito de conferir-lhe uma segunda cobertura (isto é, com o propósito de reforçar normativamente o cumprimento do referido preceito normativo aduaneiro), e que para tais efeitos se associe ao acontecimento de tal conduta a aplicação de uma sanção; para o qual o legislador descreve a conduta em uma norma, estruturando o tipo infracional e estabelece a sanção correspondente;
- Que um sujeito atue (realize) tal conduta (ativa ou omissiva); e
- Que por meio de um procedimento administrativo ou um processo judicial se comprove a existência de tal conduta, e se atribua ao sujeito que atuou as consequências jurídicas previstas naquela norma.
Agora, para a constatação da configuração de uma infração aduaneira e a imposição de suas consequências sancionatórias, requer-se a determinação de um órgão do Estado que detém a potestade punitiva ou sancionadora, perante o qual se siga o procedimento ou processo estabelecido previamente, a fim de comprovar a conduta atribuída a um sujeito e sua adequação típica à infração aduaneira, a medida da reprovação à conduta efetivamente desenvolvida pelo seu autor, assim como, as possíveis causas de relevação, e finalmente, nos casos em que proceda, a efetiva realização da sanção ao seu responsável ou seus responsáveis.
Assim, a finalidade do Processo ou Procedimento Aduaneiro deve se enquadrar na averiguação da existência de fatos infracionais e o julgamento da eventual conduta denunciada ou investigada, atribuída a uma ou mais pessoas (físicas ou jurídicas), para determinar se a mesma pode ser encaixada no tipo infracional previsto, e somente nesse caso, impor àqueles as consequências previstas pela norma legal11.
Portanto, em primeiro lugar, o Processo judicial (ou Procedimento administrativo) Aduaneiro por Infrações aduaneiras, deve estar direcionado a procurar a constatação judicial (ou administrativa) da ocorrência e veracidade dos fatos denunciados (ou investigados), e sua atribuição a uma ou mais pessoas.
Em segundo lugar, deve estar orientado a constatar a adequação (ou não) dos fatos à norma infracional, e somente no caso de se verificar isso, deve-se julgar a conduta do autor (ou autores) mediante a apreciação da culpabilidade do sujeito (salvo se a responsabilidade lhe fosse imputada a título de responsabilidade objetiva).
Finalmente, em terceiro lugar, salvo causa de justificação existente12, deve-se impor ao seu autor ou autores e/ou aos demais responsáveis, as consequências previstas na norma legal, sempre dentro de seus limites, com o grau de proporcionalidade à conduta desenvolvida pelo autor ou autores, garantindo ao infrator, em todos os casos, o exercício pleno de seus direitos de defesa13.
- O objeto da prova nos processos judiciais e procedimentos administrativos em matéria sancionatória aduaneira: a acreditação da existência de fatos infracionais
Agora, se no âmbito de um processo judicial ou um procedimento administrativo o que determina os fatos a provar são as normas substantivas, deve-se pontuar que a norma que deve guiar o objeto destes será a norma sancionatória cuja configuração se supõe ocorrida, e não a norma que regula o regime que se entenda descumprido, ou vulnerado no caso.
Portanto, é necessário conhecer aqueles fatos do passado com relevância jurídica que, se verificada sua existência e produção, determinam que se configurou uma infração aduaneira ou uma falta administrativa (correcional ou disciplinar).
Então, cabe perguntar-se: quais são os fatos do passado com relevância jurídica à resolução de mérito?
Evidentemente, por seu caráter principal, os fatos que determinam a ação típica. Mas também os que determinam a vinculação ou participação de um sujeito em relação a tais fatos; aqueles que determinam a atuação do sujeito nos fatos (que permitem determinar o grau de culpabilidade); e os demais fatos que possam determinar uma excludente de responsabilidade dos sujeitos vinculados aos fatos.
Portanto, a aquisição de toda prova relevante para a decisão é uma das finalidades mais importante em matéria de processos e procedimentos administrativos sancionatórios.
Assim, de acordo com os fatos do caso que serão esclarecidos no processo ou procedimento administrativo sancionatório, serão os fatos que devem ser comprovados para poder aplicar a consequência sancionatória resultante da verificação judicial ou administrativa da configuração da infração aduaneira ou falta administrativa (correcional ou disciplinar).
No entanto, existem certas tendências a orientar os processos e procedimentos administrativos sancionatórios para a demonstração da possível violação de um determinado regime aduaneiro ou diversas normas de regulação, que embora possa estar “protegido” por uma norma sancionatória, não determina, por si só, que sua mera transgressão configure a infração aduaneira ou falta administrativa que se relaciona com a mesma.
A infração ou a falta contemplam os elementos necessários para que se configurem as mesmas e que resulte aplicável a consequência sancionatória (sanção).
Para além de a norma sancionatória (infração ou falta administrativa) contemple com determinada precisão todos os elementos do regime que pode ser descumprido, ou o realize por meio de seu reenvio, ou por meio de um tipo aberto, em qualquer um dos casos, o foco de atenção não se encontra no regime jurídico que se entende que pode ter sido transgredido, mas sim no tipo infracional ou na descrição da falta administrativa.
Isso que parece óbvio, na prática não é, e observam-se processos e procedimentos orientados a demonstrar as inconsistências produzidas em relação às normas que regulam os regimes ou os procedimentos, as possíveis “irregularidades” operacionais, diversos descumprimentos pelo sujeito processado, e, em definitivo, abandona-se o objeto do processo judicial ou procedimento administrativo de determinação da ocorrência de uma infração aduaneira ou falta administrativa.
Vejamos o seguinte caso que ilustra em boa medida o que dizemos.
Uma situação que na via judicial tem gerado de maneira recorrente debates inadequados no Uruguai é a existência de inconsistências em relação aos Certificados de Origem, e a pretensão do Estado de atribuir a essa situação a configuração de uma infração de diferença de origem.
A diferença de origem é uma das hipóteses da Infração aduaneira de “Diferença”, que prevê a configuração da referida infração quando na importação definitiva se constata, por ocasião do controle aduaneiro prévio à liberação, uma diferença na origem da mercadoria, entre a declaração do solicitante do referido regime aduaneiro e o que efetivamente foi constatado. Substancialmente, configura-se a referida infração se se declara uma determinada origem da mercadoria e a mercadoria tem uma origem diversa da declarada.
Diante dessa situação, que pode ter sua gênese em diversas inconsistências14 documentais, tem-se pretendido girar em torno do regime de origem, à forma de acreditação da origem, a diversas considerações em torno da isenção de tributos, etc. No entanto, todas elas não atendem ao único e mais relevante ponto em questão, para que possa ser imposta uma sanção em um processo aduaneiro sancionatório, e é, se essa inconsistência configura uma infração aduaneira de diferença.
Enquanto a declaração resultante coincidir com a origem da mercadoria, e a origem puder ser provada em juízo, marco onde o legislador dispôs que deveria ser corroborada a ocorrência das infrações aduaneiras, é indiferente, para os efeitos da configuração da infração aduaneira de diferença (de origem) que o instrumento utilizado para acreditar a origem tenha sido desconsiderado. Portanto, uma situação assim não poderá configurar uma infração aduaneira de diferença, pois o que requer o tipo é a discordância entre a origem declarada e a origem da mercadoria. Origem da mercadoria que pode ser provada no processo judicial.
Na verdade, ao pouco que se perceba que o processo aduaneiro sancionatório é um processo de verificação sobre a existência de fatos infracionais, e que eles emergem pura e exclusivamente ao confrontar os fatos cuja existência resulte provada no processo com as normas sancionatórias, e que verificado isso, é que deve ser aplicada a norma que estabelece a consequência sancionatória, deve-se concluir que o objeto do processo está delimitado pelas normas que geram a única consequência passível de ser imposta. Isto é, as infrações aduaneiras tipificadas.
- Sobre a admissibilidade ou não da “carga” da prova em matéria de direito aduaneiro sancionador
COUTURE define a carga processual: “como una situación jurídica instituida en la ley consistente en el requerimiento de una conducta de realización facultativa, normalmente establecida en interés del propio sujeto, y cuya omisión traerá aparejada una consecuencia grave para él”15 [como uma situação jurídica instituída na lei consistente na exigência de uma conduta de realização facultativa, normalmente estabelecida no interesse do próprio sujeito, e cuja omissão trará uma consequência grave para ele] .Acrescentando que: “Así configurada, la carga es un imperativo del propio interés. Quien tiene sobre sí la carga se halla compelido implícitamente a realizar el acto previsto; es su propio interés quien le conduce hacía él. La carga se configura como una amenaza, como una situación embarazosa que grava el derecho del titular. Pero éste puede desembarazarse de la carga, cumpliendo”16 [Assim configurada, a carga é um imperativo do próprio interesse. Quem tem sobre si a carga é implicitamente compelido a realizar o ato previsto; é seu próprio interesse que o conduz para ele. A carga se configura como uma ameaça, como uma situação embaraçosa que pesa sobre o direito do titular. Mas este pode se livrar da carga, cumprindo].
Como observa DE PAULA RAMOS, a “carga” é uma situação passiva subjetiva fraca, que descreve um comportamento que o Direito “valoriza” mas não exige de forma categórica, e que permite ao sujeito escolher entre agir ou não conforme ao comportamento (positivo ou negativo) “valorizando”, sem que a não realização da conduta implique um ilícito.
Enquanto isso, o “dever” é uma situação subjetiva passiva com sujeição forte, que estabelece uma regra jurídica imperativa e que descreve um comportamento (positivo ou negativo) que o Direito exige de forma categórica. O sujeito obrigado não tem a possibilidade de escolher agir ou não conforme ao comportamento (positivo ou negativo) de forma que, se não o realiza, configura-se um ilícito.
Se aplicarmos essas ideias ao que resulta da atividade probatória da Administração em um procedimento administrativo, e ainda mais em um processo administrativo sancionador, podemos concluir que referir-se à “carga” em matéria de prova por parte da Administração é tecnicamente inadequado e sensivelmente perigoso.
Logo que se pretenda avançar com a regra referida dentro do campo da atividade administrativa sancionadora, observa-se sua discordância funcional, pois a mesma se depara com os deveres próprios da Administração, a necessária falta de interesse que a Administração deve ter em um resultado particular, e somente na realização plena do direito, e sua orientação para a busca da verdade material com tal fim.
Em matéria de procedimentos administrativos, atribuir à Administração uma carga em relação à prova determina um interesse de execução facultativa, e embora implicasse uma consequência adversa, se seu resultado fosse negativo, isso se afasta da função que deve cumprir a Administração.
Inclusive, em matéria de revisão dos atos administrativos ditados pela Administração Aduaneira, na medida em que o ato é submetido à revisão jurisdicional de um terceiro, não determina a verificação de fatos diversos dos do ato administrativo, mas sim, a adequada resolução em relação à verificação fática realizada na via administrativa, e a correta aplicação do direito, o que é apreciável na motivação da resolução. Portanto, também nesse contexto pode-se referir à carga da prova.
Se se determina que a Administração Aduaneira ditou um ato administrativo impondo uma sanção que não estava configurada, incumpriu seu dever de provar no grau requerido pelo padrão de prova aplicável. Não resultando transferíveis as atribuições de risco que determina a carga de prova objetiva, que lhe é inaplicável.
Além disso, em matéria de processos judiciais, o representante do Estado, titular da ação fiscal, tem um poder-dever de orientar sua atuação processual à busca da verdade material, e não à concretização de um interesse particular diverso (seja fiscalista, seja repressivo).
Tratando-se do Estado, a única orientação de sua conduta processual é a correta aplicação das normas jurídicas, e não um interesse de realização contrário a essas normas, mesmo que pudesse ter com isso um resultado econômico que lhe fosse favorável. Portanto, dessa forma, sob o disfarce de um regime sancionador, buscaria um fim arrecadatório, desinteressando-se da correta aplicação do direito.
Por isso, o representante do Estado em um processo aduaneiro sancionador judicial deve agir em concordância com o dever do Estado.
- O princípio orientador do Direito Aduaneiro Sancionador de “preservação de status de inocência” (presunção de inocência) e sua incidência na dúvida
Como dissemos, o Direito Aduaneiro Sancionador é constituído pelo conjunto de normas e princípios jurídicos que regulam o poder punitivo do Estado com a finalidade de garantir a preservação e o restabelecimento da ordem jurídica em matéria aduaneira mediante a retribuição de uma sanção, salvaguardando – simultaneamente – as garantias individuais dos sujeitos a quem se pretende impor tal consequência jurídica.17
Assim, a regulação do poder punitivo do Estado se materializa em normas repressivas que tendem a preservar a ordem jurídica e restabelecê-la quando foi vulnerada, e isso se consegue na forma e com a intensidade que a sociedade (Estado) considerou satisfatória para a concreta proteção do bem jurídico que se tutela.
Além disso, os princípios do Direito Sancionatório desempenham um papel essencial na contenção efetiva e adequada do poder punitivo do Estado, articulando-o e orientando-o sempre para a concretização de seu objetivo.
Os princípios do direito sancionatório constituem o escudo de proteção das pessoas (físicas e jurídicas) frente aos eventuais excessos do poder Estatal.
Mas também esses princípios têm uma função transcendente na etapa germinal das normas repressivas, ao receptar aqueles em seus conteúdos. Assim, por exemplo, o legislador deve redigir o tipo infracional em consonância com o princípio da tipicidade, o que implica que a conduta que se pretende reprimir resulta efetivamente descrita na norma.
Chegado a este ponto, pode-se observar que, sendo o processo judicial ou o processo administrativo um âmbito de elucidação jurídica emergente das normas substantivas, estas determinam quais são as bases fáticas para uma determinada resolução.
Assim, no plano sancionatório pode-se observar que, para que seja proferida uma sentença de condenação, devem ter sido verificados todos os elementos do tipo, sob o padrão probatório estabelecido para isso. Isso resulta ser a concretização da norma que conecta fatos antecedentes com consequentes (sanção).
Em contrapartida, uma sentença de absolvição pode resultar da confirmação da inexistência de algum ou todos os elementos do tipo, portanto, a verificação de que não se configurou a infracção aduaneira, e dado isso, a verificação de que não existe norma que deva ser aplicada. Em outros termos, existe certeza de que o fato não ocorreu.
Mas também uma absolvição pode partir da falta de verificação da existência de um ou mais elementos que são necessários para que se aplique a consequência normativa, e nesse caso, apesar de não estar confirmado que o fato não aconteceu, não se pôde confirmar também que efetivamente aconteceu. Ou seja, não existe certeza nem da ocorrência do fato nem da não ocorrência. Existe “dúvida”.
Chegado a este ponto, deve-se observar que, avaliada a prova pelo Juiz, no processo judicial, ou pela Administração Aduaneira, no procedimento administrativo, e não existindo certeza, mas sim dúvida, em matéria sancionatória, operará o princípio da “presunção de inocência”, que determina que diante da dúvida deve-se decidir a favor da absolvição.
Nos processos sancionatórios, diante da dúvida, não se distribui o suposto risco da falta de certeza, como prevê a carga da prova objetiva. A dúvida nunca prejudica o acusado, pois resulta aplicável o princípio da presunção de inocência.
Cabe precisar que a “presunção de inocência” não se trata tecnicamente de uma presunção, dada sua estrutura, nem cumpre a mesma função. Sem prejuízo, representa um princípio que guia quem deve resolver (Juiz ou Administração Aduaneira) em toda a orientação de busca da verdade dos fatos. Sendo aplicável, não somente ao finalizar o processo, e diante da dúvida, mas durante todo o processo ou procedimento. Por isso preferimos denominá-lo como “Preservação do status de inocente”.
Aqueles que pretendem matizar a aplicação do princípio da presunção de inocência, assim como outros princípios do Direito Aduaneiro Sancionatório, no âmbito das infrações administrativas, nas infrações aduaneiras, e nas faltas administrativas, pretendem diminuir as garantias dos administrados com o propósito de simplificar a tarefa da Administração e afastá-la da busca da verdade material. Isso, geralmente, com o pretexto de alcançar interesses gerais, mesmo que implique sancionar uma pessoa de maneira infundada (substancialmente, a um inocente) e portanto, contrariando a norma de aplicação.
Na pretensão de aplicação matizada dos princípios do Direito Sancionatório à atividade administrativa, entre os quais se encontra o de presunção de inocência, observa-se um discurso jurídico orientado ao declínio ou relaxamento da eficácia da Administração na busca da verdade.
O mesmo acontece ao pretender estabelecer padrões de prova menos exigentes, que facilitem ou diminuam o esforço de provar a existência do fato que se requer como certo para a aplicação da norma sancionatória.
Agora bem, se observarmos a função que cumpre a carga da prova objetiva, isto é, distribuir o risco de não ter alcançado a certeza sobre determinado fato entre as partes em conflito, em relação a quem deveria prová-lo, pode-se observar sua falta de operatividade nos procedimentos administrativos sancionadores, pois nestes a carga não pode ser colocada na cabeça do decisor (Administração). Além disso, resulta da aplicação o princípio da inocência, que determina a maneira como deve agir quem decide frente ao dubium em que se encontra.
- Novamente estamos em torno da “verdade” e a busca da verdade material
Embora entendamos que na busca da verdade só podemos nos deparar com algumas certezas, o processo judicial e o procedimento administrativo em matéria sancionatória têm que orientar sua atividade probatória à busca da verdade material.
Certamente, tal orientação será necessária para alcançar o grau de certeza requerido à prova. O grau de certeza requerido à prova é fixado pelos padrões da prova, que contêm critérios que indicam quando se conseguiu a prova da existência ou inexistência de um determinado fato. Em definitivo, é o grau de suficiência do material probatório que se requer para ter por verificado um determinado fato.
Assim, a certeza sobre a ocorrência do fato infracional determina a aplicação da consequência jurídica frente à verificação judicial ou administrativa desse fato.
Em sentido contrário, a certeza sobre a não ocorrência do fato infracional, ou a certeza sobre a falta de relação do fato com o sujeito ao qual inicialmente foi atribuído, determina a não aplicação da consequência jurídica, ao se verificar judicial ou administrativamente que o fato não ocorreu, ou que o sujeito não se relacionou com aquele.
Finalmente, cabe concluir que, em matéria sancionatória, uma absolvição pode estar baseada na certeza da não ocorrência dos fatos infracionais, ou na falta de elementos de acreditação que determinem que efetivamente se realizou o tipo sancionatório. Em contrapartida, uma condenação só pode estar baseada em certezas.
- Quase como uma conclusão.
A carga da prova já não tem razão de ser nos processos civis dado o sistema de livre valoração da prova. Com a regra da carga da prova ou sem ela, o resultado é o mesmo.
Cabe concluir que, mesmo nos processos civis, nos quais já é questionada a utilidade da carga dad prova, resultando na sua qualificação como desnecessária e inútil, ou sem nenhuma conexão necessária18, nos processos judiciais e procedimentos administrativos em matéria aduaneira sancionatória não resulta de aplicação em razão da situação em que se encontra o representante do Estado (processos judiciais) e a Administração Aduaneira, tendo em vista o seu dever de alcançar a verdade material e aplicar corretamente o direito.
Agora, se o processo se encerra, e avaliada a prova não existe a certeza da ocorrência de um fato, o fato simplesmente não está provado. A consequência jurídica que requer a verificação do fato não pode ser nem pretendida nem imposta.
Nos processos administrativos não existe carga da prova da Administração, mas sim o dever de provar os fatos legalmente exigidos para uma imputação sancionatória, caso contrário o ato administrativo será desmotivado.
Em qualquer caso, a carga da prova resulta inoperante em matéria Sancionatória, dado que a presunção de inocência resolve os casos de non liquet (não está claro).
Tanto nos processos judiciais quanto nos procedimentos administrativos é possível impor uma sanção somente se houver obtido a certeza da verificação dos fatos infracionais e a autoria de quem é indicado como infrator. Em tais casos ocorre a realização do direito ao caso concreto (infração – Sanção).
A dúvida ou falta de certeza determina sempre a absolvição (manifestação finalista da presunção de inocência).
Como corolário disso, cabe lembrar o quefoi expresso por Jordi NIEVA FENOLL, no que diz respeito a “Não é fácil dizer adeus àquilo que sempre nos acompanhou”; no entanto, já é hora de dizer-lhe adeus à carga da prova, e colocar o foco na busca da verdade material, e na preservação do status de inocência.
Não lhes parece?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COUTURE, Eduardo J., Fundamentos del Derecho Procesal Civil, Ediciones Depalma, Buenos Aires, 1964
DE PAULA RAMOS, V. (2020). La carga de la prueba en el proceso civil: de la carga al deber de probar. Madrid: Marcial Pons.
FERRER BELTRÁN, J (2019). “La Carga Dinámica de la Prueba. Entre la Confusión y lo Innecesario” (pp. 53-87), en Contra la Carga de la Prueba. Madrid: Marcial Pons.
FIGUEREDO, F. y VARELA, A. (2022). “Los Despachantes de Aduana y las infracciones y sanciones aduaneras”, Ilícitos aduaneros y sanciones, PARDO CARRERO, G, Editor, Bogotá: Tirant lo Blanch, pp. 312-364.
NIEVA FENOLL, J. (2019) “La Carga de la Prueba: una Reliquia Histórica que Debiera ser Abolida” (pp. 23-52), en Contra la Carga de la Prueba. Madrid: Marcial Pons.
TARUFFO, M. (2010). Simplemente la verdad: el juez y la construcción de los hechos. Madrid: Marcial Pons.
TARUFFO, M. (2019) “Casi una Introducción” (pp. 11-21), en Contra la Carga de la Prueba. Madrid: Marcial Pons.
VARELA, A. (2017) “Una necesidad imprescindible: Desterrar definitivamente el régimen de responsabilidad objetiva del infraccional aduanero”. Revista IUS ET VERITAS Nº 55. Lima: Asociación IUS ET VERITAS, pp. 236 – 254
VARELA, A. (2020). “Reflexiones en torno al proceso judicial por infracciones aduaneras en Uruguay”, en Revista de Derecho YACHAQ N° 11, del Centro de Investigación de los Estudiantes de Derecho (CIED), Cusco, Universidad Nacional de San Antonio Abad del Cusco, pp. 189-205.
Autor
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Doutor em Direito e Ciências Sociais (Udelar - Uruguai). Professor Adjunto em Direito Aduaneiro e Comércio Exterior (Udelar). Docente na Escola de Pós-Graduação (Faculdade de Direito, Udelar). Coordenador Geral e expositor - Jornadas Acadêmicas de Direito Aduaneiro (2014-2024). Palestrante nacional e internacional em Direito Aduaneiro. Autor de artigos na área de Direito Aduaneiro. Presidente da Academia Latino-Americana de Direito Aduaneiro. Membro da sala do Instituto de Finanças Públicas (Udelar) e da Associação Argentina de Estudos Fiscais. Sócio da VARELA - Customs Law Firm.
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