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Fronteiras Conceituais, Integração Normativa e Nulidades na Admissão Temporária e Repetro-Sped

A fiscalização dos regimes aduaneiros especiais, notadamente a admissão temporária regulada pela IN RFB nº 1600/2015 e seu modelo setorial, o Repetro-Sped, previsto na IN RFB nº 1781/2017, tem despertado crescente interesse em razão das dificuldades inerentes à gestão e controle desses regimes e do significativo impacto econômico destas modalidades no funcionamento e desenvolvimento de setores considerados estratégicos, como o petróleo e gás.

O presente estudo busca enfrentar o desafio de delimitar as fronteiras conceituais e procedimentais entre a revisão dos requisitos e condições para a concessão do regime e o seu descumprimento; um terreno frequentemente marcado por confusões práticas, que contribuem para insegurança jurídica, disputas administrativas e, não raramente, distorções na responsabilização fiscal do importador.

Historicamente, o funcionamento dos regimes aduaneiros especiais era pautado por uma sequência procedimental clara, marcada pelos seguintes eventos[1]: (i) Formalização do requerimento de concessão do regime; (ii) Análise dos requisitos e condições objetivos – documentalidade, regularidade, destinação e vinculação; e (iii) Deferimento do regime, se houvesse conformidade.

A decisão que autorizava a concessão, portanto, constituía condição prévia para fruição do regime, sendo esta acompanhada por controles de prazo e resolutividade, impondo ao beneficiário observar restrições próprias da finalidade declarada e das providências para extinção regular do regime. Em tais circunstâncias, eventuais descumprimentos, como prazos expirados sem extinção adequada ou uso do bem em atividade diversa da autorizada, traduziam-se em fatos objetivos que ensejavam a execução do Termo de Responsabilidade (TR) para cobrança dos tributos suspensos.

Ocorre que a mudança de paradigma na fiscalização, com a transferência da análise detalhada quanto ao preenchimento dos requisitos para concessão para o pós-despacho, alterou de forma substancial a dinâmica original. O objetivo de abreviação do tempo de conclusão do despacho aduaneiro acabou por reduzir a nitidez entre as fases procedimentais, de modo que se passou a tratar, conjunta e simultaneamente, de questões de admissibilidade do regime e hipóteses de descumprimento, abrindo espaço para a sobreposição de procedimentos e a pulverização de conceitos fundamentais.

A distinção, antes evidente, entre a aferição dos requisitos e condições para a concessão e a apuração do descumprimento do regime, foi comprometida, e agentes fiscais, julgadores administrativos e até magistrados passaram a adotar, por vezes inadvertidamente, padrões menos rigorosos na averiguação dessas diferenças, impactando a segurança jurídica dos regimes.

A diferença, entretanto, é elementar ao funcionamento correto do regime. O procedimento de avaliação e revisão dos requisitos e condições para a concessão prioriza a análise ex ante, de caráter preventivo e instrutório, em que se verificam indícios de não atendimento aos pressupostos normativos. Trata-se de hipótese que demanda exame profundo dos documentos apresentados, avaliação detalhada das condições objetivas de regularidade, e abre espaço para a manifestação do contribuinte, que pode sanear falhas, responder a intimações e interpor recursos; ingredientes indispensáveis à validade e legitimidade do processo administrativo contemporâneo, sob a ótica dos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal.

Evidencia-se uma relação de prejudicialidade: durante a revisão da concessão de regime aduaneiro especial ainda vigente – e enquanto o regime não for indeferido por decisão administrativa definitiva -, a exigência do crédito tributário deve permanecer suspensa até que todas as etapas de verificação e saneamento sejam definitivamente superadas. Justamente por envolver indícios ou situações passíveis de regularização pelo importador, o procedimento de revisão demanda cautela antes de qualquer autuação, sob pena de comprometer a coerência processual e gerar casos paradoxais, em que a situação aduaneira do bem ainda não está definida, mas já exista cobrança fiscal instaurada.

O descumprimento do regime, por outro lado, é evento posterior, consequente da fruição do regime, e demanda a constatação de fatos objetivos – não meros indícios – que concretizam a violação da finalidade do regime. Exemplos típicos, alguns já citados acima, são a utilização do bem em finalidade diversa, a inobservância de prazos, a ausência de providências para extinção ou devolução, entre outros. Estando presente tal fato, a autuação e a exigência do crédito tributário revelam-se não apenas cabíveis, mas obrigatórias, sob pena de responsabilização funcional do agente que deixar de fazê-lo.

A confusão entre revisão e descumprimento, tão comum atualmente, resulta em riscos evidentes, materializados em autuações precipitadas com base em indícios não confirmados, desconectadas do trâmite administrativo regular, e que visam a exigência fiscal calcada em fundamento ainda instável.

A doutrina de Maria Sylvia Zanella Di Pietro[2] e Celso Antônio Bandeira de Mello[3] bem elucida que princípios como a legalidade estrita e a vinculação dos agentes públicos ao procedimento previsto vedam essa elasticidade ou improvisação procedimental, consagrando também o princípio da segurança jurídica, a isonomia entre os administrados e a previsibilidade decisória, elementos centrais do Estado Democrático de Direito. É nessa perspectiva que se torna essencial analisar o arcabouço normativo.

O Atual Arcabouço Normativo

Embora a IN 1781/2017, que regula o Repetro-Sped, seja mais recente, houve certa estagnação em sua evolução normativa, contrastando com o processo contínuo de revisão e aprimoramento observado na IN 1600/2015 que trata do regime de admissão temporária. Esta última, ao incorporar avanços procedimentais – fruto da experiência consolidada em setores que lidam com admissão temporária -, não apenas elevou a eficácia do controle, mas também fortaleceu a segurança jurídica, ao conferir transparência e robustez ao sistema mediante a positivação de práticas detalhadas.

Não obstante, eventuais lacunas procedimentais da IN 1781/2017 jamais representaram relevantes entraves práticos, pois a integração normativa entre elas sempre foi reconhecida de forma explícita em remissões diretas ou por construção interpretativa externada pela RFB em seus manuais, tornando natural a utilização da IN 1600/2015 como fonte supletiva e subsidiária para colmatar lacunas no Repetro-Sped, especialmente no que diz respeito à revisão dos requisitos e condições da concessão e à apuração do descumprimento do regime. Enquanto a IN 1781/2017 regula apenas etapas de tais procedimentos nos arts. 19, 20, 34, 35, 36 e 37, a IN 1600/2015 propicia um roteiro bem definido — a exemplo do que se observa nos arts. 89 e seguintes — assegurando tratamento uniforme, previsível e coerente com a evolução procedimental do Direito Aduaneiro brasileiro como um todo.

Construiu-se um modelo de eficiência regulatória, onde o princípio da especialidade convive harmonicamente com a necessidade de integração normativa, evitando a criação de regimes estanques, incoerentes e potencialmente geradores de conflitos e ineficiência, e preservando as particularidades das atividades econômicas subjacentes a cada regime.

No entanto, e a despeito do uso reiterado da IN 1600/2015 como balizadora, permaneciam dúvidas pontuais acerca da extensão e obrigatoriedade dessa aplicação subsidiária, sobretudo nas hipóteses mais complexas do Repetro-Sped (art. 2º, inc. IV e V), que tratam da admissão temporária com e sem pagamento proporcional de tributos.

Era possível perceber, inclusive, a tendência de alguns agentes fiscais em adotar procedimentos divergentes, ora ignorando etapas protetivas, ora antecipando medidas sancionatórias baseadas apenas em indícios de irregularidade. Essa realidade não raramente resultava em disparidades de tratamento entre diferentes unidades regionais da RFB, ampliando a insegurança jurídica e dificultando a uniformização das decisões administrativas. A ausência de uma diretriz explicitada na própria IN 1781/2017 deixava espaço para interpretações divergentes, em alguns casos mais rigorosas, noutros, mais flexíveis, a depender do entendimento do agente fiscal no caso concreto.

Foi necessária, então, a edição da IN RFB nº 2226/2024 para, entre outras medidas, incluir o § 2º[4] ao art. 39-A da IN 1781/2017, cujo efeito prático foi eliminar margens de discricionariedade ou hesitação interpretativa, ao prever expressamente a aplicação, de forma subsidiária, da IN 1600/2015 às hipóteses de admissão temporária previstas nos incisos IV e V do art. 2º da IN 1781/2017. Ainda que pudesse ser considerada desnecessária, a previsão expressa consolida, de uma vez por todas, o entendimento que já era latente: a referência direta à IN 1600/2015 na IN 1781/2017, para além de técnica de remissão, trata-se de condição indispensável para garantir padrão, racionalidade e segurança aos procedimentos.

O impacto prático dessa inovação é profundo. Primeiro, porque impede que o auditor-fiscal, de maneira unilateral, deixe de observar ritos e garantias detalhados nas normas aplicáveis, tornando nulo qualquer ato que, sob suposto benefício ao contribuinte ou tentativa de simplificação, se afaste dos procedimentos obrigatórios. Segundo, porque reforça que medidas sancionatórias, a exemplo da lavratura imediata do auto de infração ou a execução do TR, não podem ser adotadas enquanto perdurar o procedimento de revisão dos requisitos e condições – vige aqui a prejudicialidade lógica e material do procedimento preparatório em face da constituição ou execução do crédito tributário.

Esse cuidado é fundamental para evitar descompassos, como a instauração de exigências fiscais antes de solucionadas dúvidas sobre a regularidade do regime ou saneadas falhas documentais. Quando a prejudicialidade não é respeitada, vale repetir, corre-se o risco de se criar quadros em que o crédito tributário é exigido com base em indícios ainda não definitivamente apurados, enquanto o bem permanece sob regime aduaneiro válido, daí porque a coerência entre o procedimento fiscal e a situação aduaneira do bem constitui condição necessária para a segurança jurídica de todo o sistema, protegendo a administração de autuações prematuras e claramente ilegais, e o contribuinte de cobranças desconectadas da realidade processual.

Tal cenário normativo se ajusta à luz dos princípios constitucionais da legalidade, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, compondo um quadro protetivo dos direitos do administrado e balizador das ações do Poder Público. Ao exigir que o fiscal observe rigorosamente os procedimentos previstos em lei, afasta-se qualquer espaço para arbitrariedades ou escolha discricionária de ritos, assegurando isonomia, padronização, segurança jurídica e, sobretudo, respeito à vinculação positiva conferida pela lei e pelos regulamentos.

Isso significa que, em matéria de revisão de concessão do regime de admissão temporária, todo indício de não atendimento de requisitos deve ser tratado com rigor procedimental materializado (i) na instauração de processo de revisão, (ii) na abertura de prazo para manifestação, (iii) na possibilidade de saneamento de falhas ou apresentação de recursos e (iv) na conclusão inequívoca pela regularidade ou não do regime antes da eventual exigência do crédito tributário.

Somente a consolidação de um fato objetivo (não mais um simples indício), ao final de todos os trâmites previstos, legitima a atuação sancionatória da RFB, seja pela execução do TR, seja pela lavratura do auto de infração. Por outro lado, a supressão de uma das etapas do procedimento previsto nos arts. 89-A e seguintes da IN 1600/2015 enseja a nulidade insanável da revisão da concessão do regime e de todo e qualquer ato que venha a ser praticado posteriormente pelo Fisco, como a lavratura de auto de infração para exigir os tributos.

O acórdão 3201-011.583 do CARF[5], único precedente sobre a matéria, evidencia que a interpretação e aplicação dos preceitos constantes na IN 1600/2015 em matéria de revisão da concessão do Repetro-Sped já era a melhor prática. Esse entendimento, firmado antes mesmo das modificações introduzidas na IN 1781/2017, demonstrou que, no caso de admissão temporária para utilização econômica, os dispositivos contidos no Capítulo IV da IN 1600/2015 deveriam ser rigorosamente observados para assegurar não apenas o cumprimento técnico dos ritos normativos, mas também a plena garantia do contraditório. É o que se observa do seguinte trecho do voto-condutor, que adotou, como razões de decidir, o que já havia sido consignado no voto proferido pela DRJ quando do julgamento da impugnação:

Fls. 1794 – Sobre a Inobservância do Procedimento previsto na IN 1600 de 2015 acerca de eventuais irregularidades que motivam o cancelamento dos Lançamentos: Quando da lavratura do auto de infração, já estavam vigentes os arts. 89-A a 89-D e 121 da IN RFB 1.600/2015, do Capítulo IV, intitulado “Da revisão dos Pedidos Relativos à Aplicação do Regime”, os quais determinam que o importador deve ser intimado a sanar as irregularidades constatadas nos procedimentos de revisão de concessão ou prorrogação do regime e que cabe recurso da decisão ao Auditor-Fiscal que a proferiu, o qual deve encaminhar ao titular da unidade, em caso de não reconsideração de sua decisão.

Verifica-se que não foi esse o procedimento adotado pela fiscalização, que optou em lavrar auto de infração, sem qualquer intimação prévia do autuado para esclarecer/sanear as irregularidades suscitadas.

Portanto, o lançamento é improcedente, por ter sido efetuado desobedecendo as determinações existentes na legislação aduaneira que dispõe sobre a aplicação dos regimes aduaneiros especiais de admissão temporária para utilização econômica.”

Embora se trate de um único precedente do CARF, sua existência contribui para a compreensão do movimento interpretativo que, mesmo antes das alterações introduzidas na IN 1781/2017, orientava a aplicação dos dispositivos da IN 1600/2015 na matéria de admissão temporária. O acórdão revela que a adoção dos critérios normativos decorreu de interpretação fundada nos parâmetros técnicos vigentes.

Sob outra perspectiva, a previsibilidade e a coerência proporcionadas pela consolidação desses fluxos procedimentais têm impacto direto sobre o ambiente de negócios, posto que investidores nacionais e estrangeiros tendem a confiar mais em regimes regulados por normas transparentes, estáveis e aplicadas de modo uniforme, fatores que pesam decisivamente na alocação de capital, nas estratégias de internacionalização de empresas e na ampliação de operações de alta complexidade. A racionalização administrativa não só fortalece a credibilidade do sistema, mas atua como vetor de desenvolvimento econômico e atração de investimentos produtivos para o país.

Conclusão

A evolução recente da regulamentação, que torna expressa a aplicação subsidiária da IN 1600/2015 às modalidades de admissão temporária do Repetro-Sped, pode até parecer mera reafirmação de um cenário consolidado, mas cumpre papel imprescindível ao garantir, de modo inequívoco, a ordem lógica, principiológica e procedimental adequada para, de um lado, proceder à revisão da concessão dos regimes e, de outro, apurar eventual descumprimento, impactando de maneira direta e significativa a qualidade e a previsibilidade das decisões administrativas e judiciais, e gerando precedentes mais sólidos e alinhados à legislação.

Trata-se de um modelo multifacetado, em que Direito Administrativo, Aduaneiro e Tributário se entrelaçam sob premissas constitucionais e infraconstitucionais, assegurando, simultaneamente, a efetividade da fiscalização, a coerência do sistema normativo e a máxima proteção do interesse público e dos administrados, tornando a operacionalização do regime aduaneiro de admissão temporária, e do Repetro-Sped, em especial, um verdadeiro exemplo de maturidade regulatória e jurídica para o país.


[1] O procedimento aplicável aos requerimentos de prorrogação do regime era o mesmo.

[2] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 34. ed. São Paulo: Atlas, 2021.

[3] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 34. ed. São Paulo: Malheiros, 2017.

[4] § 2º Às hipóteses previstas no art. 2º, caput, incisos IV e V, aplica-se, subsidiariamente, o disposto na Instrução Normativa RFB nº 1.600, de 14 de dezembro de 2015[Incluído(a) pelo(a) Instrução Normativa RFB nº 2226, de 27 de setembro de 2024]

[5] 3201-011.583, Sessão de 18 de março de 2024 – 3ª Seção de Julgamento/2ª Câmara/1ª Turma Ordinária

Autor

  • Eduardo Kiralyhegy

    Advogado com quase 25 anos de atuação nas áreas de Direito Público (Tributário, Aduaneiro, Regulatório e Administrativo), em temas contenciosos e consultivos. Ex-integrante de Conselhos Fiscais de Companhias listadas na Bolsa de Valores e Ex-Corregedor de ICMS da Corregedoria Tributária de Controle Externo da Secretaria de Fazenda do Estado do Rio de Janeiro entre 2013 e 2020. Membro da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB/RJ (CDAD/RJ), membro da Comissão Especial de Assuntos Tributários da OAB/RJ (CEAT/RJ), membro da Comissão de Relações Institucionais com Órgãos Fazendários da OAB/RJ, da Associação Brasileira de Direito Tributário (ABDF), da Academia Brasileira de Direito Tributário (ABDT) e da International Fiscal Association (IFA). Palestrante em eventos especializados em Direito Tributário e Aduaneiro e Professor em Cursos de Instituições de Ensino.

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*Este artigo reflete as opiniões do (a) autor (a), e não do Instituto de Pesquisas em Direito Aduaneiro – IPDA.
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