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Inteligência Artificial e Propriedade Intelectual: Desenhando o Futuro do Comércio Internacional

A inteligência artificial (IA) não é mais uma promessa futura: é uma realidade concreta que transforma setores econômicos, produtivos e regulatórios, com impacto direto no comércio internacional e nos regimes de propriedade intelectual (PI). O relatório “Trading with Intelligence”, publicado em 2024 pela Organização Mundial do Comércio (OMC)[1], mostra como a IA atua de forma transversal nas dinâmicas do comércio global, não apenas impulsionando a digitalização, mas também desafiando os modelos tradicionais de proteção de ativos intangíveis.

O uso de grandes volumes de dados como insumo para treinamento de modelos de IA intensifica uma tensão já conhecida: a conciliação entre direitos de PI, privacidade, livre fluxo de dados e estímulo à inovação. O atual arcabouço jurídico internacional, especialmente o Acordo TRIPS[2] da OMC, foi concebido em um contexto pré-IA, no qual criação e invenção eram atividades essencialmente humanas. A ascensão de sistemas capazes de gerar obras, conteúdos e até invenções de forma autônoma desafia esse paradigma.

Um ponto crítico é o uso de obras protegidas por direitos autorais para treinamento de modelos de IA. Textos, imagens, músicas, bases de dados e outros conteúdos são frequentemente utilizados como insumo para esses sistemas, muitas vezes sem consentimento dos titulares nem compensação. Surge a pergunta central: o treinamento de IA configura violação de direitos autorais, ou poderia ser enquadrado como uso justo, exceção ou limitação? A resposta varia muito entre jurisdições. Enquanto países como o Japão[3] adotaram abordagens mais flexíveis, permitindo o uso de obras protegidas sem necessidade de autorização, outras regiões, como a União Europeia, exigem salvaguardas e preservação dos direitos dos titulares. Nos Estados Unidos, o treinamento de IA com obras protegidas vem sendo justificado por empresas com base no “fair use”, um princípio da Lei de Direitos Autorais Norte-americana[4], que permite o uso de obras protegidas sem autorização do autor em certas circunstâncias. Em decisão recente[5], um juiz da Califórnia deu ganho de causa à Anthropic ao entender que o uso de livros para treinar o Claude — chatbot desenvolvido pela empresa — não violou a lei de direitos autorais dos Estados Unidos. O tribunal considerou que o treinamento do modelo se assemelha ao ato de um escritor que lê obras de outros autores para obter inspiração e conhecimento do tema, criando, assim, algo novo e diferente, em vez de reproduzir o conteúdo protegido de forma literal.

No caso do Brasil, o Senado aprovou, em dezembro de 2024, o PL 2.338/2023[6], que estabelece que sistemas de IA não poderão utilizar conteúdos protegidos sem autorização prévia e, quando aplicável, remuneração aos titulares. O texto do projeto está na Câmara dos Deputados desde 17 de março de 2025, sob relatoria em uma Comissão Especial que deverá elaborar um parecer. Estão previstas várias audiências públicas sobre temas como saúde, educação, segurança e finanças para subsidiar a elaboração do referido documento. Apesar disso, ainda há lacunas sobre como operacionalizar essas regras e regulamentações complementares necessárias para definir critérios, exceções e formas de remuneração.

No âmbito do Standing Committee on Copyright and Related Rights (SCCR)[7] da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), o Brasil tem promovido discussões contínuas sobre o tema em várias reuniões, com sessões informativas que abordam aspectos legais e técnicos da proteção dos direitos autorais e a necessidade de remuneração aos titulares de obras usadas no treinamento de IA. Na última reunião, em abril de 2025, o país ressaltou a importância de regular o uso de obras protegidas em sistemas de IA — com ênfase em transparência de dados, mecanismos de licenciamento (incluindo licenciamento coletivo) e remuneração adequada. O Brasil também propôs uma nova sessão informativa dedicada a licenciamento e IA, além da criação de uma plataforma voltada para infraestrutura e questões de direitos autorais.

No âmbito das patentes, surgem dilemas igualmente complexos. A proteção de algoritmos como invenções não é consensual, mesmo quando preenchem requisitos como novidade, atividade inventiva e aplicação industrial. Além disso, o requisito de suficiência descritiva — que obriga o titular a revelar detalhes suficientes para que um técnico na matéria possa reproduzir a invenção — entra em tensão com o desejo de manter algoritmos e modelos em segredo industrial[8]. Isso impacta diretamente o estímulo à inovação, a transparência, a auditabilidade e a segurança dos produtos baseados em IA que circulam no comércio internacional.

Uma camada adicional de complexidade envolve a questão da titularidade de criações e invenções geradas por IA. As legislações atuais, baseadas no princípio da autoria ou inventividade humana, não reconhecem, salvo raríssimas exceções, a atribuição de direitos de PI a máquinas. Isso cria uma zona cinzenta jurídica: quem detém os direitos se uma IA gera um design, uma obra literária ou mesmo propõe uma solução técnica inédita? O desenvolvedor do sistema, o operador, o usuário que forneceu o prompt, ou ninguém? Essa indefinição não é trivial, especialmente no contexto de cadeias globais de valor, em que ativos intangíveis são moeda corrente e objeto central das transações internacionais.

O impacto desses desafios no comércio global é direto. Produtos e serviços habilitados por IA — de veículos autônomos a softwares especializados — circulam entre fronteiras, mas dependem de marcos jurídicos que nem sempre dialogam de forma harmonizada. A ausência de padrões internacionais claros sobre PI aplicada à IA pode gerar barreiras técnicas ao comércio, disputas comerciais e acirrar desigualdades entre países com maior ou menor capacidade de desenvolver, proteger e comercializar tecnologias baseadas em IA.

O Acordo TRIPS, embora continue sendo o principal instrumento multilateral sobre PI no comércio, demonstra limitações frente à velocidade da transformação tecnológica. A flexibilidade do TRIPS, que permite adaptações nacionais, é uma virtude, mas também aumenta o risco de fragmentação normativa, especialmente em temas como mineração de dados, proteção de segredos industriais e reconhecimento de direitos sobre outputs de IA. Nesse contexto, intensificam-se as discussões tanto na OMC quanto na OMPI sobre a necessidade de revisitar e atualizar os marcos internacionais de PI para responder aos desafios impostos pela IA.

Outro ponto crucial é o risco de surgimento de uma nova “divisão digital” no comércio internacional, na qual países que não detêm capacidade tecnológica para desenvolver IA, ou que enfrentam restrições para acessar dados e modelos, fiquem à margem dos benefícios econômicos dessa revolução. Essa assimetria tecnológica afeta diretamente a capacidade desses países de proteger seus ativos intangíveis, de se inserir competitivamente nas cadeias globais de valor e de negociar em pé de igualdade no cenário internacional.

Nesse cenário, pensar a governança da IA e seu impacto sobre a PI não é apenas um exercício jurídico ou técnico, mas uma discussão estratégica que envolve hegemonia tecnológica, desenvolvimento econômico e justiça distributiva. A ausência de respostas coordenadas, especialmente no âmbito da OMC, pode levar ao aumento de disputas comerciais, à adoção de medidas unilaterais de proteção de mercados e, consequentemente, à erosão dos princípios multilaterais que regem o comércio internacional — o que já se observa na prática.


[1] WORLD TRADE ORGANIZATION (WTO). Trading with Intelligence: Artificial Intelligence and Trade Rules for Sustainable Development. Geneva: World Trade Organization, 2024. ISBN: 978-92-870-7428-0. Disponível em: https://www.wto.org/english/res_e/booksp_e/trading_with_intelligence_e.pdf

[2] O Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (Acordo TRIPS) estabelece padrões mínimos de proteção a serem observados pelos Membros, com relação a direito autoral, marcas, indicações geográficas, desenhos industriais, patentes, circuitos integrados e informação confidencial. Ele incorpora os principais dispositivos substantivos da Convenção de Paris para a Proteção da Propriedade Intelectual e da Convenção de Berna para a Proteção de Trabalhos Literários e Artísticos (com exceção dos direitos morais), ambos negociados no âmbito da OMPI.

Além do estabelecimento de padrões de proteção substantivos, o Acordo TRIPS ainda contém dispositivos sobre procedimentos domésticos e instrumentos para o “enforcement” de direitos de propriedade intelectual. Disponível em: https://www.wto.org/english/docs_e/legal_e/27-trips_01_e.htm

[3] ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (OCDE). Intellectual Property Issues in Artificial Intelligence Trained on Scraped Data. Paris: OECD Publishing, 2025. Disponível em: https://www.oecd.org/content/dam/oecd/en/publications/reports/2025/02/intellectual-property-issues-in-artificial-intelligence-trained-on-scraped-data_a07f010b/d5241a23-en.pdf. Acesso em: 10 jun. 2025.

[4] ESTADOS UNIDOS. Copyright Act of 1976. Washington, DC: U.S. Government Publishing Office. Disponível em: https://www.copyright.gov/title17/. Acesso em: 5 jun. 2025.

[5] ESTADOS UNIDOS. District Court, Northern District of California. Bartz v. Anthropic PBC, No. 3:23-cv-05834 (N.D. Cal.). Ação judicial em curso. Disponível em: https://www.courtlistener.com/docket/69058235/bartz-v-anthropic-pbc/. Acesso em: 30 jun. 2025.

[6] CONGRESSO NACIONAL (Brasil). Projeto de Lei nº 2338, de 2023: Dispõe sobre o uso da inteligência artificial no Brasil. Brasília: Câmara dos Deputados, 2023. Proposição legislativa online. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2487262

[7] WORLD INTELLECTUAL PROPERTY ORGANIZATION (WIPO). Standing Committee on Copyright and Related Rights (SCCR) – 46th Session – Morning Session, 11 April 2025. Geneva: WIPO. Vídeo (webcast). Disponível em: https://webcast.wipo.int/video/SCCR_46_2025-04-11_AM_124834

[8] GUERRA M. e Silva, R.; Vasconcellos, A. G.; Guerrante, R.; Fonseca, E.; Salles Filho, S. L. M. A Proteção Patentária de Invenções Geradas e Assistidas Pela Inteligência Artificial: Uma Abordagem das Diretrizes de Exame de Mérito. In: XX Congreso LatinoIberoamericano de Gestión Tecnológica y de la Innovación – ALTEC, 2023: “Los desafíos de la ciencia, la tecnología y la innovación en la transformación digital” / compilación de ponencias – 1ra ed. – Paraná: Asociación Latino-Iberoamericano de Gestión Tecnológica y de la Innovación (ALTEC), 2123-2132. Argentina 2023. ISSN: 2789-9764

Autor

  • Rafaela Guerrante

    Rafaela Guerrante é engenheira e doutora em Gestão da Inovação pela UFRJ, especialista em propriedade intelectual com mais de 23 anos de atuação no serviço público brasileiro. Diretora de Parcerias na Women Inside Trade, tem trajetória marcada por cooperação internacional, pesquisa em IA aplicada à automação de escritórios de PI e liderança em projetos de gênero, diversidade e inclusão. Foi pesquisadora na Missão do Brasil junto à OMC e na OMPI, é autora e coautora de livros sobre biotecnologia, inteligência artificial e liderança feminina, e atua como mentora para mulheres no campo da propriedade intelectual.

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*Este artigo reflete as opiniões do (a) autor (a), e não do Instituto de Pesquisas em Direito Aduaneiro – IPDA.
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