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A Reforma Tributária nas importações indiretas: a reinvenção das trading companies?

Não é novidade para ninguém que a Reforma Tributária alterará significativamente a dinâmica da incidência dos tributos sobre o consumo no Brasil, impactando os negócios de absolutamente todas as empresas brasileiras, de estrangeiras que possuem negócios ou investimentos aqui, assim como de toda a população em geral.

No âmbito corporativo o impacto das alterações nas regras fiscais dependerá de empresa para empresa, embora seja possível antecipar alguns efeitos mais gerais e homogêneos por setores.

Por exemplo, o setor de serviços em geral deverá enfrentar um aumento de carga tributária relevante, dadas as alíquotas atualmente aplicáveis e aquelas até então estimadas (apesar de poderem recuperar mais créditos fiscais do que atualmente).

Por outro lado, a indústria, em tese, tenderá a ter uma redução de carga tributária, ou ao menos uma redução relevante da litigiosidade por força da prometida não cumulatividade plena (a ver se esta se aperfeiçoará mesmo, como propalado nos discursos oficiais).

Dentre essas análises gerais e mais amplas, este artigo se propõe a trazer algumas reflexões sobre os impactos da Reforma Tributária nas importações indiretas, bem como se tais alterações ensejarão uma revolução nos negócios das trading companies de importação.

Os comentários não são exaustivos e não consideram a realidade individual de cada trading company, pretendendo dar luz a aspectos que tendem a ser mais homogêneos às empresas deste setor.

As modalidades de importação indiretas

As importações indiretas, principal linha de negócio das trading companies de importação, se dividem em duas modalidades: a importação por conta e ordem e a importação por encomenda[1].

Sem adentrar nos detalhes de cada modalidade de importação ou situações específicas de produtos[2], as principais características destas modalidades de importação são:

  • Importação por conta e ordem de terceiros: caracteriza-se por ser uma prestação de serviços pela trading company, de modo que a mercadoria estrangeira é adquirida do exportador diretamente pela sua contratante no Brasil (‘adquirente’).

A trading company é responsável por todos os trâmites aduaneiros para a importação das mercadorias, registrando a Declaração de Importação / DUIMP[3] em seu nome, com a indicação dos dados do adquirente), além de interagir com os demais intervenientes aduaneiros.

Para fins tributários, o importador (trading company) é qualificado como contribuinte dos tributos aduaneiros federais (Imposto de Importação, IPI, PIS e COFINS), existindo algumas situações exóticas, como o crédito do IPI ser registrado pelo importador e os créditos de PIS e COFINS serem registrados diretamente pelo adquirente.

O ICMS na importação sempre foi objeto de controvérsias, notadamente quanto ao estado competente para cobrá-lo. Teoricamente o Supremo Tribunal Federal – STF ‘pacificou’ o assunto no julgamento do Tema 520, entendendo que o estado legitimado seria aquele de localização do adquirente (embora ainda existam discussões sobre os contornos de tal modalidade de operação em diversos casos).

Na saída da mercadoria do importador ao adquirente há a incidência do IPI, havendo ainda procedimentos assimétricos quanto ao ICMS a depender dos estados envolvidos e se a saída é interna ou interestadual.

Os serviços prestados em si são tributados normalmente pelo ISS, PIS e COFINS.

  • Importação por encomenda: consiste em duas operações de compra e venda das mercadorias, sendo uma internacional (entre exportador e trading company) e outra nacional (entre a trading company e seu cliente – encomendante), tendo por características relevantes: (i) o pedido prévio de importação à trading company; e (ii) a titularidade dos recursos empregados na operação internacional, que devem ser próprios do importador (sendo admitidos pagamentos antecipados pela compra ou arras).

Por se tratar de sucessivas operações de compra e venda, a tributação tende a ser mais objetiva, com a incidência dos tributos aduaneiros tradicionais (Imposto de Importação, IPI, PIS, COFINS e ICMS) sobre o importador, que recolherá os tributos sobre a venda (IPI, PIS, COFINS e ICMS) quando da revenda do produto nacionalizado.

Os impactos da Reforma Tributária nas trading companies – cenário atual

Feitos estes esclarecimentos iniciais e introdutórios acima, adentremos ao assunto principal: o negócio das trading companies e os impactos da Reforma Tributária.

As trading companies assumem um papel fundamental e expressivo nas importações brasileiras, pois possuem portfolio bastante diversificado de produtos, facilitando de sobremaneira o acesso a fornecedores globais com custos mais competitivos.

Dentre os benefícios de se operar via trading companies estão (i) acesso a melhores condições comerciais de frete, seguro e demais serviços associados à importação; (ii) forte expertise em práticas internacionais e na intrincada legislação / burocracia aduaneira; (iii) terceirização de atividades-meio para foco na atividade-fim; (iv) acesso a linhas de financiamento às vezes mais vantajosas; etc.

Apesar da relevância destes benefícios, há ainda um outro ativo relevante na importação via trading companies: o planejamento tributário.

É fato notório e histórico que os estados concederam incentivos fiscais de ICMS para fomentar a importação pelos seus portos e aeroportos, os quais geralmente consistem em diferimentos do ICMS-Importação e na redução da carga tributária nas operações subsequentes (das formas mais variadas, desde os tradicionais créditos presumidos e similares, a linhas de financiamento com pagamento antecipado com deságio).

Tais incentivos fiscais, que remontam há mais de cinquenta anos (como a instituição do icônico FUNDAP[4] pelo Espírito Santo na década de 70), correspondem a um fator de competitividade relevante que conferem ainda mais relevância às operações via trading companies.

O planejamento tributário nas operações via trading company não se resumem apenas a incentivos fiscais de ICMS. A depender do caso, há outras externalidades fiscais positivas em se operar por trading companies, mesmo sem os referidos benefícios fiscais.

Tais benefícios podem se traduzir, por exemplo:

  • Na cessação do acúmulo de créditos de ICMS (e até seu consumo), dada a aplicação geral da alíquota de 4% nas operações interestaduais com produtos importados;
  • Na potencial redução da carga tributária de PIS e COFINS para produtos monofásicos;
  • No acesso a outras reduções tributárias sujeitas a credenciamentos prévios[5];
  • Em eventuais reduções de ICMS-ST em razão das bases de cálculo aplicáveis; entre outros.

O cenário futuro pode trazer alguns desafios e oportunidades quanto aos elementos tributários que induziam a competitividade das trading companies, que é o que se passa a analisar.

Os impactos da Reforma Tributária nas trading companies – cenário futuro

  • Incentivos fiscais de ICMS

Um dos pilares da Reforma Tributária consiste em reduzir a concessão de incentivos fiscais, notadamente da forma como ocorre atualmente para o ICMS.

Embora ainda existam benefícios fiscais pós-Reforma Tributária, as hipóteses e mecanismos aplicáveis (sobretudo pelos estados e municípios) foram significativamente limitados, inclusive devido à alteração do regime de tributação para o destino, que esvazia a competência tributária para a concessão de benefícios fiscais e a disponibilidade dos recursos para fazê-lo.

Assim, o impacto mais direto e óbvio da Reforma Tributária será a eliminação dos incentivos fiscais tradicionais de ICMS à medida em que tal tributo for parcialmente reduzido a partir de 2029 até sua total extinção 2033.

A Emenda Constitucional n° 132/23 previu um mitigador de efeitos da redução parcial dos incentivos de ICMS durante o período de transição, qual seja, o Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais ou Financeiro-Fiscais do ICMS[6].

Em linhas gerais, para acessar tal Fundo o incentivo fiscal deverá, cumulativamente: (i) possuir ato concessório; (ii) ter sido concedido até 31 de maio de 2024; (iii) possuir prazo certo; e (iv) possuir condição onerosa.

Como regra, os incentivos fiscais concedidos às trading companies podem encontrar dificuldades para atender especialmente o requisito indicado no item (iv) acima, pois muitas vezes sua fruição depende do atendimento de certos requisitos cuja qualificação como ‘condição onerosa’ pode ser discutível.

Ademais, a habilitação do benefício ao Fundo será feita pela Receita Federal do Brasil (e não pelos estados concedentes), havendo tendência da adoção de interpretação restritiva a exemplo das diversas discussões sobre subvenções para investimento.

A Emenda Constitucional n° 132/23 também já previu um substituto dos incentivos fiscais de ICMS (não relacionados apenas às importações) para o período após a transição: o Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional – FNDR[7].

Este fundo visa conferir um instrumento financeiro aos estados (sobretudo em desenvolvimento) para se manterem viáveis e atrativos a novos investimentos, pois há uma percepção de futura concentração dos investimentos próximos dos maiores mercados fornecedores e consumidores no pós-Reforma.

Assim, embora sob outra forma, os estados ainda terão mecanismos para atrair empreendimentos ou investir no setor de comércio exterior, especialmente no nordeste e no estado do Espírito Santo.

Vale destacar que os montantes destinados ao Fundo serão limitados e ‘concorridos’ com outros setores estratégicos dos estados, de forma que podem ser insuficientes para subsidiar a todos.

Além disso, pondera-se que o fim dos incentivos fiscais de ICMS se aplicará a todos os contribuintes, e não apenas aos benefícios de importação ou às trading companies.

Tal fato poderá abrir janelas de oportunidade para as importadoras, pois atualmente muitos incentivos fiscais industriais exigem que os bens e insumos sejam importados diretamente pelo estabelecimento beneficiário, restringindo a atuação das trading companies.

Com o fim dos incentivos fiscais para todos, não haverá mais restrições, e a esperada não cumulatividade plena ensejaria neutralidade fiscal para as operações via trading company.

  • PIS/COFINS monofásicos

Os planejamentos de PIS e COFINS para produtos monofásicos também serão impactados.

Diferentemente dos incentivos fiscais do ICMS, que serão progressivamente reduzidos a partir de 2029 e existindo até 2033, o PIS e a COFINS serão extintos em janeiro de 2027, quando serão substituídos pela CBS.

Tal substituição automaticamente encerra o regime monofásico, e, com isso, a atual vantagem econômica de eventuais operações de importação por encomenda.

  • Créditos acumulados de ICMS

Uma das principais complexidades enfrentadas pela indústria e comércio atualmente é o acúmulo de créditos de ICMS, diante da ausência de instrumentos eficazes para a monetização dos saldos na legislação dos estados e do seu efeito pernicioso no caixa das empresas.

Os créditos de ICMS que se encontrarem registrados nos livros fiscais em 31 de dezembro de 2032 poderão ser compensados com o IBS em 240 (duzentos e quarenta) parcelas mensais e sucessivas, atualizadas pelo IPCA, após um processo de homologação prévio.

Assim, os contribuintes deverão submeter seus créditos a análise prévia das autoridades fiscais – que se sabe adotarem interpretações restritivas, por vezes em sentido oposto à jurisprudência vinculante de tribunais superiores – para, se aprovados, poderem utilizar tais montantes mensalmente ao longo de vinte anos.

Mesmo que a carga tributária do contribuinte seja aumentada pela Reforma Tributária (o que deve acontecer nos setores sujeitos a incentivos fiscais ou alíquotas reduzidas), o direito de uso dos créditos do (futuramente) extinto ICMS será limitado a tais parcelas mensais, o que também representará efeito relevante no caixa das companhias.

Em princípio os créditos poderão ser transferidos a terceiros, o que facilitaria sua monetização, entretanto, há que se considerar em termos práticos que tais créditos provavelmente serão negociados com deságios relevantes, reduzindo expressivamente seu valor.

Dessa forma, as trading companies podem ser instrumentos relevantes para evitar o acúmulo de créditos de ICMS ou mesmo viabilizar a utilização antes e durante a transição, podendo mitigar ou evitar que a monetização de tais montantes seja feita em período tão longo (vinte anos da homologação pelo Comitê-Gestor do IBS).

Embora alguns estados possibilitem a concessão de regimes especiais para suspender total ou parcialmente o ICMS-Importação para reduzir o acúmulo de créditos, a aprovação destes regimes muitas vezes é demorada e incerta, especialmente considerando o cenário fiscal dos estados.

A operação via trading company usualmente viabiliza os efeitos acima independentemente de autorização das autoridades fiscais, ou, quando necessário, normalmente em ritos simplificados de credenciamento nos Termos de Acordo já concedidos às trading companies.

Considerações finais

Como visto, a Reforma Tributária impactará alguns fundamentos importantes do modelo de negócios das trading companies, entretanto, a história mostra que este é um setor resiliente a mudanças.

Isso porque as trading companies já atravessaram por diversos momentos de inflexão sobre suas atividades, como quando (i) as modalidades de importação foram efetivamente regulamentadas (época na qual havia muitas discussões sobre interposição fraudulenta); (ii) houve sucessivas investidas fiscais de glosa de créditos (que se convencionou chamar de ‘Guerra dos Portos’); (iii) aumentou-se as autuações e discussões sobre sujeição ativa do ICMS-Importação; (iv) a Resolução do Senado Federal n° 13/2012, que reduziu as alíquotas interestaduais, foi aprovada; (iv) a convalidação original dos incentivos fiscais pela Lei Complementar n° 160/2017 previu prazos reduzidos às importações.

Apesar disso, o setor sempre seguiu em frente, se aperfeiçoando às mudanças e mantendo o seu protagonismo no comércio exterior brasileiro.

A Reforma Tributária promete ser mais um capítulo nesta história, que certamente demandará alterações no modelo de negócios antes, durante e após a transição para o regime definitivo, sendo imprescindível que as empresas estejam preparadas para a nova realidade que se imporá.

A antecipação para esta nova realidade, portanto, é imprescindível para que as trading companies (e até mesmo os seus clientes) estejam preparados para enfrentar o mar turbulento que se aproxima no período de transição, devendo não se ancorar no passado, mas sim terem a versatilidade de se reinventarem na medida do necessário, oferecendo novos modelos e soluções para o mercado de modo a preservar sua longevidade.


[1] A importação por conta e ordem de terceiros e por encomenda atualmente são regulamentadas pela Receita Federal por meio da Instrução Normativa n° 1.861/2018.

[2] Não serão consideradas tributações específicas sobre alguns produtos, como por exemplo a CIDE-Combustíveis.

[3] Declaração Única de Importação.

[4] Fundo de Desenvolvimento das Atividades Portuárias – FUNDAP.

[5] A título de exemplo, cita-se o setor aeronáutico e a redução de base de cálculo do ICMS prevista no Convênio ICMS n° 75/91.

[6] Instituído conforme art. 12 da Emenda Constitucional n° 132/23.

[7] Instituído conforme art. 159-A da Constituição Federal.

Autor

*Este artigo reflete as opiniões do (a) autor (a), e não do Instituto de Pesquisas em Direito Aduaneiro – IPDA.
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