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Desconforto no ex-tarifário: projeto de investimento e a vedação ao arbítrio

Em agosto de 2023, os operadores do comércio exterior foram surpreendidos com a publicação da Resolução GECEX nº 512/2023, que modificou substancialmente o pleito do ex-tarifário. É comum que os profissionais do comércio exterior esperem por mudanças na legislação aduaneira, quando ocorre transição no perfil do governo federal – todavia, neste caso, novas “tecnologias normativas” foram introduzidas, em relação as quais a comunidade como um todo está com dificuldades em lidar, especialmente quanto ao projeto de investimento.

Desde a publicação do novo texto, que revogou a Portaria ME nº 309/2019 e a Portaria SDIC/ME nº 324/2019, discussões sobre os novos requisitos foram protagonistas de dúvidas e debates entre os pleiteantes, especialmente em relação àquilo que modificou o Norte da bússola para todos: o já referido projeto de investimento no âmbito do ex-tarifário, seja em relação à exigência do projeto em si, seja quanto ao seu conteúdo nos termos do art. 4º, inciso III, §3º da nova Resolução – e parece que, dependendo de onde se fala, a posição cardeal que se observa não é a mesma.

A norma dispõe que o pleito deverá referir-se a bem que corresponda: a um único código NCM; apresentar sugestão de descrição para o ex-tarifário; estar acompanhado de catálogos originais e projeto de investimento contendo:

  • A função do equipamento na linha de produção;
  • O cronograma e o local de utilização;
  • As tecnologias inovadoras do produto pleiteado ou melhorias no produto final e outras informações que justifiquem a criação da exceção.

Com a possível exceção do ponto (iii), observa-se a vinculação do bem ao pleiteante. Ocorre que o ex-tarifário é um pleito/regime de caráter objetivo; ou seja, que está ligado diretamente ao bem e é concedido, ou não, em razão das características do bem, ao contrário de Regimes Aduaneiros Especiais de caráter subjetivo ou misto – como o REIDI, por exemplo –, em que se consideram o pleiteante e seu projeto para a concessão do benefício. Isso significa que um novo requisito aparentemente estranho ao ex-tarifário foi incluído na legislação, atraindo características subjetivas – do pleiteante – como condicionantes para a concessão do pleito.

De um lado, a intenção da norma é evidente, no sentido de conceder o pleito apenas para bens que estejam alinhados à política de desenvolvimento nacional. Por outro lado, em razão da própria estrutura do ex-tarifário, considerar o plano de negócios, ou estrutura de negócios do pleiteante careceria de fundamento lógico, já que qualquer importador poderia gozar da alíquota reduzida em relação ao bem, após a concessão do pleito, sem a necessidade de apresentação de qualquer projeto de investimento.

É possível sustentar a legalidade e/ou legitimidade da nova exigência, assim como o inverso também é verdadeiro – todavia, o incômodo é unânime. Para entender a sensação de desconforto com o novo regramento, é necessário verificarmos de perto as consequências das novas exigências. Em razão da limitação de espaço e da proposta desta coluna, não analisaremos todos os aspectos e seus meandros exaustivamente, mas apenas aquilo que afeta o debate de forma mais incisiva.

O primeiro aspecto que mais chama à atenção é a legalidade, considerando a aplicação da hermenêutica e legislação tributária ao caso. Ocorre que há também um segundo aspecto em relação a um princípio não tão presente no cotidiano dos juristas, mas que sua existência talvez explique – e seja causa de vício de inconstitucionalidade – a dificuldade de lidar com a nova legislação por todos os operadores envolvidos – seja da administração pública, seja dos pleiteantes do ex-tarifário –, que é a vedação ao arbítrio. Tratemos, em primeiro lugar, da legalidade.

Da Legalidade

Este aspecto ainda é discutido de forma tímida nos Tribunais e, para estressar o debate, não é exagerado expô-lo, por mais que conhecido pelos colegas operadores do direito e do comércio exterior. Trata-se do conflito entre a redação do art. 4º da Lei nº 3.244/1957[1] com o art. 4º, inciso III e § 3° da Resolução GECEX nº 512/2023.

Em suma, a extrapolação do poder de regulamentar se manifestaria pelos requisitos internos do projeto de investimento, que são passíveis de obstaculizar a concessão do pleito, sem fundamento na norma que permite a implementação do ex-tarifário. A simples obrigação de demonstrar a função do equipamento na linha de produção seria capaz de restringir a apresentação do pleito apenas a produtores e excluir prestadores de serviço, por exemplo – além de que restaria “manifestamente implícito” que é vedado ao pleiteante revender o bem importado. As possíveis interpretações restritivas são muitas.

A ilegalidade do projeto de investimento é passível de ser arguida nesse sentido, mas também pode ser defendida pelo art. 14, inciso I do Decreto-Lei nº 37/1966, quando dispõe que “poderá ser concedida isenção do impôsto de importação (…) aos bens de capital destinados à implantação, ampliação e reaparelhamento de empreendimentos de fundamental interêsse para o desenvolvimento econômico do país”.

Ambas as posições são razoáveis e, além disso, a intenção contida na norma é legítima, qual seja: conceder o pleito apenas para bens que estejam alinhados à política de desenvolvimento nacional. Todavia, ainda resta a questão: por que restringir o direito de pleitear o ex-tarifário a determinados sujeitos se, após a concessão, qualquer importador, independentemente de projeto de investimento, poderá gozar da redução de alíquota?

Conforme exposto adiante, esse desconforto com o novo regramento não é fruto de manifesta ilegalidade, ou falta de legitimidade, mas sim da arbitrariedade que se manifesta pela forma em que a legislação foi estruturada – e, como sabemos, o ordenamento jurídico deve ser racional e lógico. Não se trata de legalidade, mas sim de adequação e, em última instância, igualdade e isonomia.

Da vedação ao arbítrio[2]

Em razão da delicadeza do tema e para demonstrar que a Resolução GECEX nº 512/2023 não se sustenta parcialmente em razão do princípio da vedação ao arbítrio – exclusivamente em relação à exigência de projeto de investimento ao pleiteante –, será necessário o desenvolvimento técnico-jurídico do argumento.

Comecemos do início. O art. 5°, caput, da Constituição Federal dispõe que todos são iguais perante a lei e este é o alicerce do princípio geral da igualdade. Todavia, a colocação da preposição perante não é um limitador, mas um aspecto da igualdade – a igualdade formal, atinente à aplicação da norma jurídica.

O pressuposto da igualdade formal é a igualdade material, que se verifica no corpo normativo que será aplicado, ou seja, a igualdade “por dentro da Lei”. Derivado do princípio da igualdade em ambos os aspectos, tanto formal quanto material, temos a vedação ao arbítrio em matéria tributária, de natureza inerente à isonomia.

Esse princípio não é construção meramente doutrinária, mas pode ser extraído do art. 150, II da Constituição Federal, quando dispõe que é vedado ao Estado “instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos”.

Portanto, a norma não pode manifestar fenômenos arbitrários e deve fazer parte de um sistema lógico. Com isso, a norma que concede benefícios e/ou redução tarifária está sujeita a crivos hermenêuticos, que têm por objetivo verificar sua coerência à luz da isonomia.

A aplicação isonômica da lei, ou seja, a distribuição igualitária da norma não é suficiente para a concretização do princípio da isonomia. Na verdade, o principal destinatário do princípio da vedação ao arbítrio é o próprio legislador que, nos meandros da norma jurídica, não deve incluir fatores que importem em diferenciação arbitrária dos sujeitos que dela serão destinatários. O professor Celso Antônio Bandeira de Mello já se debruçou sobre o assunto e suas palavras exprimem o racional que se descreve de forma clara e precisa:

“Então, no que atina ao ponto central da matéria abordada procede afirmar é agredida a igualdade quando o fator diferencial adotado para qualificar os atingidos pela regra não guarda relação de pertinência lógica com a inclusão ou exclusão no benefício deferido ou com a inserção ou arredamento do gravame imposto.

Cabe, por isso mesmo, quanto a este aspecto, concluir: o critério especificador escolhido pela lei, a fim de circunscrever os atingidos por uma situação jurídica – a dizer: o fato de discriminação – pode ser qualquer elemento radicado neles; todavia, necessita, inarredavelmente, guardar relação de pertinência lógica com a diferenciação que dele resulta. Em outras palavras: a discriminação não pode ser gratuita ou fortuita. Impende que exista uma adequação racional entre o tratamento diferenciado construído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo. Segue-se que, se o fator diferencial não guardar conexão lógica com a disparidade de tratamentos jurídicos dispensados, a distinção estabelecida afronta o princípio da isonomia”[3].

É possível que as distorções sejam observadas apenas quando se subsome a realidade concreta à norma jurídica, seja em exercício de pensamento, seja em observação concreta. A aparência de legalidade é capaz de comportar diferenças internas no corpo da norma, mas não de demonstrar a disparidade entre o fator diferenciador e a diferenciação real no plano dos fatos. No caso em discussão, a exigência do projeto de investimento pode estar de acordo com o princípio da legalidade, todavia, a exigência apenas ao pleiteante carece de fundamento lógico, pela forma em que o ex-tarifário existe no ordenamento jurídico.

Em termos mais concretos, cabe a reflexão sobre a adequação da nova obrigação dentro do contexto do ex-tarifário, na qualidade de uma norma jurídica que é meio para atingir um determinado fim: qual seria o fundamento lógico e a finalidade de obrigar o pleiteante a apresentar projeto de investimento se após a concessão, qualquer um poderá gozar da redução tarifária no processo de importação? Parece-nos medida inadequada e, em última instância inconstitucional, já que manifesta um cenário arbitrário – expressa a ausência de relação lógica entre a existência do projeto de investimento como regra discriminadora dos sujeitos capazes de apresentar o pleito do ex-tarifário e o próprio regramento do ex-tarifário.

Percebe-se que a restrição do direito de pleitear o ex-tarifário, por meio de norma que exige a apresentação de projeto de investimento, sedimenta um cenário arbitrário já que, em última instância, apenas restringe o direito dos sujeitos interessados de pleitear o ex-tarifário e não garante que os bens importados, após eventual concessão do pleito, serão utilizados de forma alinhada à política de desenvolvimento nacional – que é a intenção aparente da norma –, ou sequer ao projeto de investimento apresentado pelo pleiteante. Em síntese: apenas atrapalha.

Esses foram alguns apontamentos para contribuir com a investigação do porquê a nova legislação é tão incômoda – e nossa resposta seria: por vício de inconstitucionalidade –, apesar de apresentar intenções legítimas e estar possivelmente livre de vícios no âmbito da estrita legalidade. Esse caso é um bom exemplo para lembrarmos que a coerência lógica da norma jurídica em relação à realidade na qual ela está inserida também é um requisito de constitucionalidade.


[1] Lei nº 3.244/1957

Art.4º – Quando não houver produção nacional de matéria-prima e de qualquer produto de base, ou a produção nacional desses bens for insuficiente para atender ao consumo interno, poderá ser concedida isenção ou redução do imposto para a importação total ou complementar, conforme o caso. 

***

Resolução GECEX nº 512/2023

Art. 4º Cada pleito de concessão deve atender aos seguintes requisitos:

III – estar acompanhado, necessariamente, de catálogos originais e fatura proforma do bem importado, devidamente traduzidos quando não escritos em português, bem como de literatura técnica, igualmente traduzida em português, quando existente, e projeto de investimento do pleiteante;

§ 3º O projeto de investimento de que trata o inciso III do caput deverá apresentar: a função do equipamento na linha de produção; o cronograma e o local de utilização; a essencialidade ou ganhos de produtividade a partir do uso do novo equipamento; as tecnologias inovadoras do produto pleiteado ou melhorias no produto final e outras informações que justifiquem a criação da exceção, preenchidas, única e exclusivamente, por meio de formulário específico disponibilizado no Sistema Eletrônico de Informações – SEI – do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, com perfil de usuário externo.

[2] Este princípio foi bem apresentado no julgamento da ADI 3.105/DF e é trabalhado de forma excepcional em WEICHERT, Marlon Alberto. Isenções tributárias em face do princípio de isonomia. Revista de informação legislativa, v. 37, n. 145, p. 241-254, jan./mar. 2000, disponível em https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/575/r145-24.pdf?sequence=4&isAllowed=y

[3] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1993.

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Rafael Corrêa Pinheiro

Advogado. Bacharel em Direito e Mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
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