O artigo de hoje trata de uma situação comum enfrentada por importadores brasileiros e que tende a se intensificar num futuro próximo: divergência de classificação fiscal decorrente de conflitos interpretativos por parte da Receita Federal do Brasil (“RFB”) e das autoridades regulatórias, como ANVISA, MAPA e Inmetro.
Normalmente, os autos de infração sobre o tema são relevantes. Além da diferença de tributos, são exigidas multas de 1% e de 30% do valor aduaneiro, por erro de classificação fiscal e por falta de licenciamento de importação, respectivamente. E a dor de cabeça não para por aí: diversas empresas passam a ter que lidar com risco e dificuldades no âmbito regulatório, o que muitas vezes representa óbice à continuidade das operações no Brasil.
Nesse contexto, o presente artigo dedica-se a examinar os desdobramentos decorrentes da divergência na classificação fiscal de mercadorias, especialmente quando as definições adotadas por entidades como ANVISA, MAPA e Inmetro são desconsideradas ou reinterpretadas pela autoridade aduaneira.
- Classificação fiscal: panorama geral
Em linhas gerais, a classificação fiscal de mercadorias é um procedimento essencial no comércio internacional, posto que é crucial para assegurar a correta identificação dos produtos para fins de tributação, controle aduaneiro e estatísticas de comércio exterior. Como exemplo, destaca-se a utilização dessa classificação para a determinação das alíquotas dos tributos incidentes sobre a importação, tratamento administrativo, aplicação de incentivos fiscais, medidas antidumping, entre outras finalidades.
Globalmente, a classificação fiscal está fundamentada no Sistema Harmonizado de Designação e de Codificação de Mercadorias, criado pela Organização Mundial das Alfândegas (“OMA”), o qual é composto por seis dígitos numéricos, que são divididos entre capítulos, posições e subposições.
No âmbito do Mercosul, o Sistema Harmonizado foi utilizado como base para a criação da Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM), vigente nos países do bloco econômico, incluindo o Brasil. Diferentemente do Sistema Harmonizado, a NCM é composta por oito dígitos, sendo os seis primeiros alinhados ao SH e os dois últimos, conhecidos como itens e subitens, específicos do Mercosul.
A análise da classificação fiscal deve ser feita à luz das Regras Gerais de Interpretação do Sistema Harmonizado, que estabelecem princípios fundamentais para a correta classificação dos produtos dentro da nomenclatura, e ainda, fornecem diretrizes para solucionar dúvidas nos casos em que duas ou mais posições pareçam apropriadas[1]. Além disso, as Notas Explicativas do Sistema Harmonizado e os pareceres da OMA são importante fonte para orientar a atividade de classificação fiscal.
Contudo, são vários os casos em que o Sistema Harmonizado não é suficiente ou totalmente claro para identificar a NCM mais apropriada para determinadas mercadorias, seja em razão de lacunas, seja em razão de conceitos vagos. Assim, há necessidade de observância de outras fontes de interpretação do tema, como por exemplo a legislação regulatória.
- RFB versus agências reguladoras: os limites institucionais na classificação de mercadorias
Apesar da competência da RFB para fiscalizar a classificação fiscal, não são incomuns casos em que a NCM indicada pela RFB como sendo correta contrasta com a posição das autoridades regulatórias no que tange ao enquadramento produtos para fins regulatórios. Autoridades estas que igualmente possuem importante função no comércio exterior, visto que possuem competência para editar normas que estabeleçam os requisitos de importação e exportação das mercadorias, incluindo a definição do tratamento administrativo.
Comumente, o enquadramento das mercadorias da perspectiva regulatória norteará o tratamento administrativo a ser adotado nas operações de comércio exterior desses produtos. Assim, com base nas características técnicas da mercadoria, os órgãos determinarão, por exemplo, a necessidade de solicitação de Licença de Importação (“LI”) antes do embarque, bem como a realização de controles especiais quando da chegada desses bens ao país.
Contudo, não é incomum um desalinhamento entre as classificações atribuídas nas normas editadas pelos órgãos anuentes e pela RFB. Há casos em que a RFB impõe determinada classificação fiscal ao arrepio da legislação regulatória. Em outras oportunidades, a RFB vale-se da legislação regulatória para questionar a classificação fiscal supostamente validada pelas RGI.
Se pensarmos no cotidiano do nosso trabalho, são inúmeros os casos que podemos mencionar para ilustrar o tema. A começar por um canal vermelho na importação de produtos químicos para tratamento de água que, no entender da RFB, demandaria licenciamento por parte da ANVISA, enquanto o próprio órgão regulatório já se manifestou no sentido de que o produto não é controlado e que, portanto, nenhuma LI será emitida. Inúmeros autos de infração relativos à classificação fiscal de fertilizantes que, embora assim cadastrados e licenciados perante o MAPA, tiveram sua classificação fiscal questionada. Malhas aduaneiras relativas a equipamentos médicos e medicamentos dos mais variados tipos, que igualmente sofrem interpretação divergente da RFB e da ANVISA. E por aí vai…
Essa dicotomia gera insegurança jurídica e problemas que vão além do mero prejuízo financeiro resultante de autos de infração, uma vez que entendimentos diversos relativos a produtos controlados implicam riscos também da perspectiva regulatória, os quais põem em xeque a continuidade de negócios no Brasil.
- Visão jurisprudencial sobre o tema
A jurisprudência relativa a conflitos de classificação fiscal é bastante controvertida no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (“CARF”).
Há acórdãos proferidos no CARF que determinam a observância das normas regulatórias por parte da RFB[2]. De modo geral, o racional das decisões é no sentido de que, embora a RFB detenha autoridade para fiscalizar questões relacionadas à classificação fiscal, a competência para fornecer a classificação técnica dos produtos pertence às agências reguladoras. Portanto, à luz desse entendimento, a RFB não poderia adotar interpretação diversa daquela validada pelas agências reguladoras.
A título ilustrativo, veja-se trecho de acórdão do CARF que enfatiza a possibilidade de intersecção das normas aduaneiras com as normas regulatórias:
A Aduana, por meio da autoridade competente – o Auditor Fiscal, tem o direito (prerrogativa) de classificar o produto, mas tal prerrogativa não é absoluta.
Nesse sentido, advogo que a autoridade aduaneira deve utilizar as definições que tenham sido adotadas por órgãos públicos de outras áreas de competência, principalmente, quando envolvem a proteção ou a promoção da saúde, pela sensibilidade técnica e pela importância coletiva do tema.
(…)
Às autoridades aduaneiras compete determinar o correto código de classificação da mercadoria, à luz das definições técnicas.
(CARF, Acórdão nº 3401-012.366, julgado em 24/08/2023)
Por outro lado, existem também acórdãos do CARF que afastam a caracterização regulatória dos produtos para fins de definição da classificação fiscal[3]. Nestes casos, entende-se que a RFB não está obrigada a seguir as posições das agências reguladoras, sob o argumento de que o conceito regulatório não é relevante ou aplicável para fins de classificação fiscal.
Nesse sentido, a Câmara Superior de Recursos Fiscais recentemente decidiu que a classificação fiscal das mercadorias não precisaria estar alinhada às definições atribuídas pelos entes regulatórios[4]. Ambos os acórdãos envolviam a classificação fiscal de pneus, sendo que o contribuinte alegava que deveriam ser adotados os critérios estabelecidos nas normas do Inmetro, do Código de Trânsito Brasileiro e dos Manuais da Associação Latino-Americana de Pneus e Aros (“ALAPA”). Entretanto, os julgadores entenderam que as normas e manuais em questão não teriam o condão de impactar a classificação fiscal, uma vez que sua eficácia é apenas nacional (i.e. normas do Inmetro e Código de Trânsito Brasileiro) ou regional (i.e. manual da ALAPA).
A despeito da existência de posições antagônicas na esfera administrativa, na esfera judicial prevalece o entendimento de que a determinação da classificação fiscal de mercadorias deve levar em conta o conteúdo técnico das regras regulatórias.
Ao enfrentar a questão de conflito de competência entre ANVISA e Receita Federal sobre classificação fiscal, o Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) decidiu que a competência das autoridades aduaneiras não se sobrepõe ao posicionamento oficial das autoridades sanitárias. Segundo o STJ, a ANVISA é, por excelência, o órgão técnico para identificar a natureza do produto e, portanto, imprescindível para a correta classificação fiscal, conforme trecho abaixo transcrito:
“(…) “cabe à ANVISA não somente a atribuição de realizar a classificação do produto, mas também o dever da vigilância sanitária, coisa que, a toda evidência, não pertence às atribuições fiscais e aduaneiras, inclusive porque os seus agentes não dispõem do conhecimento técnico-científico exigido para esse mister; se, por acaso, algum fiscal ou agente aduaneiro detiver conhecimento químico ou farmacêutico capaz de realizar essa análise, ainda assim, não poderia fazê-lo, por lhe faltar a competência funcional; a mesma coisa ocorre nos julgamentos judiciais, quando a matéria controversa depende de conhecimento especializado, hipótese em que se requer a participação esclarecedora de um perito, ainda que o Magistrado domine a solução dos problemas do fato”
(STJ, Recurso Especial nº 1.555.004, julgado em 25/02/2016)
O entendimento acima é reverberado pelos Tribunais Regionais Federais, que consideram que as normas e conceitos regulatórios são essenciais para definir a classificação fiscal de mercadorias[5].
- Perspectivas futuras
A longo prazo, discussões envolvendo a adoção de critérios regulatórios na determinação da classificação fiscal das mercadorias tendem a ser ainda mais frequentes. Isso porque, entre 2025 e 2026, a Declaração Única de Importação (“DUIMP”) substituirá gradualmente a Declaração de Importação (“DI”) e contará com o Catálogo de Produtos.
O Catálogo de Produtos será um módulo integrante do Portal Único Siscomex, no qual deverão ser prestadas informações detalhadas acerca de produtos importados e exportados, que vão muito além daquelas prestadas por meio da classificação fiscal. Com essa funcionalidade, a RFB terá ainda mais visibilidade e meios para fiscalizar a classificação fiscal dos produtos.
Vale o destaque que, em determinados casos, o tratamento administrativo antes disponível para apenas uma NCM passará a ser aplicável a outros códigos. Isso significa que, por exemplo, um produto poderá ser classificado numa NCM distinta de medicamento, mas ainda assim ser passível de licenciamento da Anvisa como um produto enquadrado nessa categoria.
Portanto, é crucial que as empresas realizem uma cuidadosa revisão da classificação fiscal de seus produtos, a fim de possuir meios de comprovação acerca do NCM utilizado em caso de questionamento.
[1] Sobre o tema, vide artigo: Floriano, Daniela. “Instrumentos para a classificação de mercadorias: estudo e aplicação das regras gerais de interpretação do SH”. Ensaios de Direito Aduaneiro II. Cláudio Augusto Gonçalves Pereira, Raquel Segalla Reis (Org.) – 1. Ed – São Paulo: Tirant lo Blanch, 2023.
[2] Acórdãos nº 3401-012.366; 3402-007.082; 3201¬004.253; 3201-010.069; 3301-013.582; 3402-012.337; 3302-004.752; e, 3102-001.710.
[3] Acórdãos nº 3402-012.366; 3201¬005.281; 3302-011.987; 3402-009.777; e, 3102-002.420.
[4] Acórdãos nº 9303-014.769 e 9303-013.347.
[5] Processos nº 0011768-83.2013.4.01.3400; 0000935-11.2016.4.03.6127; 1033263-54.2022.4.01.3400.
Autores
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Advogada. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). LL.M. em Direito Tributário pelo Insper, com extensão no Mestrado em Direito e Economia pela University of St. Gallen, Suíça. Pesquisadora do NEF-FGV.
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