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IBS/CBS-Importação: A Base de Cálculo do ICMS Contra-Ataca

O tema do momento é a regulamentação e instituição dos tributos criados no contexto da Reforma Tributária que se deu através da Lei Complementar nº 214/2025: o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto Seletivo (IS), que vieram para substituir o ICMS, o IPI, o PIS e a COFINS.

Especificamente no que se refere ao elemento quantitativo desses tributos na importação de mercadorias, já era imaginado que a regulamentação da base de cálculo refletiria a de um dos tributos atuais. Mas não se sabia qual seria escolhida, já que cada uma faz acréscimos distintos ao pilar de construção comum (o valor aduaneiro). Poderiam ser adotadas as bases previstas para (a) o Imposto de Importação, o PIS e a COFINS, que não fazem mais qualquer acréscimo; (b) o IPI, que acresce o valor do II; ou (c) o ICMS, que acresce os valores do II, IPI, PIS, COFINS, IOF e “quaisquer outros impostos, taxas, contribuições e despesas aduaneiras”.

O IS replicou a base de cálculo do IPI, mas o IBS e a CBS surpreenderam negativamente. Não por partir da base de cálculo do ICMS-Importação, algo esperado diante da restrição a “perdas arrecadatórias”[1]; mas por incorporar na nova base de cálculo todas as rubricas cuja inclusão é muito controvertida por envolver o debate da abrangência da previsão residual da base de cálculo, que são: (a) Taxa SISCOMEX; (b) AFRMM; (c) CIDE-Combustíveis; e (d) medidas de proteção comercial (antidumping, salvaguarda e compensatórias).

Essa inclusão explícita para os novos tributos teve por objetivo superar o fundamento das decisões judiciais que determinaram a exclusão dessas rubricas da base de cálculo do ICMS-Importação[2]. Só que esse não era o único, quiçá sequer o principal, óbice à inclusão. Ainda há a impossibilidade de tributos aduaneiros serem mais onerosos do que os tributos nacionais com os quais fazem equivalência, pela regra de tratamento nacional (RTN) do General Agreement on Tariffs and Trade (GATT).

A Regra de Tratamento Nacional do GATT

Não há como iniciar um artigo sobre a Regra de Tratamento Nacional do GATT sem mencionar o trabalho referência do tema: A Tese de Doutorado de Leonardo Branco, disponível neste link, que tratou das normas niveladoras da tributação aduaneira e explica com riqueza de detalhes o que será sintetizado abaixo.

A Regra de Tratamento Nacional do Artigo III do GATT dispõe que “tributos Internos e exigências regulatórias não devem ser aplicados a produtos importados ou nacionais de modo a proteger a produção nacional” e que “produtos estrangeiros não estão sujeitos, direta ou indiretamente, a impostos ou outros tributos internos de qualquer espécie superiores aos que incidem, direta ou indiretamente, sobre produtos nacionais”.

Efetivamente, a obrigação de tratamento nacional pode ser desmembrada em duas vertentes: (a) somente poderão incidir sobre os produtos estrangeiros os tributos que incidam nas operações internas com produtos similares, à exceção do Imposto de Importação; e (b) os tributos não podem ser cobrados em patamares superiores, direta ou indiretamente, daqueles que incidem nas operações internas.

Ou seja, no que se refere à carga tributária, a tributação na importação deve visar equiparar  os produtos originados do exterior aos produtos nacionais, permitindo que eles circulem no mercado interno sem vantagem econômica. Isso significa que qualquer isenção, alíquota ou base de cálculo reduzida que é aplicada para o produto nacional deve ser estendida ao produto estrangeiro originado de país signatário do GATT.

Com efeito, os entes federativos não estão legalmente autorizados a cobrar, nas importações originadas de países signatários do GATT, tributos aduaneiros com bases de cálculo que conduzam a ônus financeiro superior àquele que seria originado numa fictícia aplicação do tributo interno sobre essa importação.

Dito isso, os tributos internos sobre o consumo têm o “valor da operação”, que corresponde à integralidade do valor pago ou a pagar pelo adquirente ao alienante como contrapartida pela transferência da propriedade da mercadoria, como pilar para construção da base de cálculo. A partir daí, alguns tributos internos exigem adição (a) do próprio montante do imposto; (b) do seguro; (c) do frete; (d) descontos condicionais; e (f) em alguns casos, de outros tributos incidentes na operação (v.g. inclusão do IPI na base de cálculo do ICMS).

Já o “valor aduaneiro”, pilar da base de cálculo dos tributos aduaneiros, é composto pelo valor admissível sob critérios comerciais razoáveis para a transferência (que usualmente corresponde ao preço pago ou a pagar pelas mercadorias pelo adquirente ao alienante) acrescido das adições obrigatórias (comissões, embalagens, custo de embalar, materiais incorporados, descontos condicionais etc.) e opcionais que foram todas instituídas pelo Brasil (frete, manuseio e seguro) previstas no Acordo de Valoração Aduaneira (AVA-GATT).

É dizer, no “valor aduaneiro” adotado pelo Brasil já estão inclusas todas as adições feitas nas bases de cálculo dos tributos incidentes na circulação interna, salvo aquelas correspondentes à adição de tributos e medidas de proteção comercial. Assim, apenas essas adições podem ser feitas, desde que também (a) se materializem em operações internas; e (b) sejam adicionadas na base de cálculo do tributo interno equivalente.

É da inobservância a tais requisitos, que surge o problema[3]. Não há previsão para inclusão do II, do AFRMM, da Taxa SISCOMEX e das medidas de proteção comercial na base de cálculo de tributos internos equivalentes, o que torna ilegítima a exigência de inclusão na base de cálculo aplicável na importação (nem seria possível, já que eles não se materializam nas operações internas). Quanto aos tributos que podem se materializar nas operações internas, a ilegitimidade surge quando sua inclusão não é exigida para os tributos internos.

Essa ilegalidade passou para as bases de cálculo do Imposto Seletivo e do IBS/CBS-Importação que, ao serem mais amplas do que as reservadas para operações internas, alargam o valor sobre o qual a alíquota dos tributos é aplicada e aumentam o ônus tributário do contribuinte na forma do art. 97, §1º do CTN. Basta uma comparação lado a lado entre as bases de cálculo para que tal conclusão seja alcançada[4]:

 Base de Cálculo (Interna)Base de Cálculo (Importação)
ISValor da Operação (Arts. 414 e 415)Valor Aduaneiro e Imposto de Importação (Art. 434)
IBS/CBSValor da operação, Imposto Seletivo e CIDE-Combustíveis (art. 12)Valor aduaneiro, Imposto de Importação, Imposto Seletivo, Taxa SISCOMEX, AFRMM, CIDE-Combustíveis, Medidas de Proteção Comercial (Art. 69)

É evidente que as bases de cálculo do IS e da IBS/CBS descumprem a Regra de Tratamento Nacional do GATT, tal como acontecia com os tributos antecessores (IPI e ICMS) dos quais incorporou a base de cálculo.

O Óbice à Ampliação da Base de Cálculo de Tributos Nacionais

Num primeiro momento, o Poder Judiciário adotou uma posição pacífica e uniforme no sentido de que a RTN do GATT era de cumprimento obrigatório e sua observância era condição de validade para exigências fiscais. Prevaleceu a posição de que o art. 98 do CTN impunha uma regra de prevalência e de intangibilidade de tratados pela legislação interna enquanto não excluídos do ordenamento interno pelos ritos adequados, com decisões determinando a equivalência da tributação aduaneira, vide Súmulas STF nº 575 e STJ nº 20 e 71.

Essa posição foi posteriormente superada para o PIS/COFINS em razão de uma compreensão duvidosa do item 7[5] da ementa do Tema nº 1 da Repercussão Geral (inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS/COFINS-Importação), que pontuava que o fato do ICMS estar incluso na base de cálculo do PIS/COFINS interno não justificava sua manutenção naquela do tributo aduaneiro, já que como eles eram tributos distintos com fatos geradores e bases de cálculo próprios na CF/88 era descabido equiparar ambos de modo absoluto.

Desse trecho, surgiu uma compreensão no STJ, que depois se espalhou para o STF, de que a RTN era inaplicável para o PIS/COFINS-Importação porque o tributo interno não era com ele equiparável. Tal premissa merece reparos, já que não se exige equiparação absoluta para viabilizar a equivalência entre o tributo aduaneiro e o interno, que naturalmente terão nuances próprias. Caso ela fosse verdadeira, a instituição do próprio tributo aduaneiro seria ilegal, dado que outras normas do GATT restringem a tributação aduaneira ao Imposto de Importação e a tributos equivalentes aos nacionais.

Mais recentemente, as discussões de RTN esbarraram em nova tese jurídica dos Estados no sentido de que a legislação interna posterior ao GATT poderia instituir uma cobrança em desacordo com suas disposições, dado que (a) os tratados, com exceção daqueles sobre direitos humanos, são internalizados no mesmo nível das leis ordinárias e das leis complementares, sendo consequentemente passiveis de revogação tácita ou limitação de eficácia pela edição de lei posterior com comando incompatível; e (b) que a Lei Complementar nº 87/96 seria mais específica ao tratar de um único tributo em espécie e não trazer regras gerais.

Tal tese está escorada em decisões do STF[6] que decidiram pela superação de tratados pela legislação interna posterior incompatível, mas que isso aconteceu num contexto muito particular em que (a) de fato havia antinomia, já que os tratados impunham comandos jurídicos diretos, não regras gerais de validade; e (b) não havia uma regra específica de prevalência dos tratados em situações de antinomia.

A RTN do GATT é um tipo bastante particular de norma jurídica, recorrente em tratados modernos, que se limita a criar requisitos de validação que devem ser observados pela legislação interna. É uma estrutura proposital para que ela possa ingressar e conviver com a legislação interna dos países signatários sem incompatibilidades, funcionando como um compêndio de requisitos mínimos de validade para uma exigência feita no âmbito nacional, externamente às regras de instituição de tributos. Não há, portanto, sequer como uma norma que institui tributos entrar em conflito antinômico com a RTN do GATT.

Indo além, o art. 98 do CTN explicitamente estabelece, na qualidade de norma geral em matéria tributária, que os tratados devem prevalecer em caso de antinomia com a legislação interna, mesmo que ela seja posterior a ele. Esse comando tributário foi posteriormente ampliado para todos os ramos do direito quando a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados foi internalizada pelo Decreto nº 7.030/09, cujos arts. 26 e 27 fixam que “todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa fé” e que “uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado”.

Outro obstáculo para essa posição é o fato de que tanto a Constituição Federal quanto a Convenção de Viena estabelecem um procedimento específico para a exclusão do tratado do ordenamento jurídico brasileiro e consequente cessação de eficácia, através do procedimento de Denúncias, Nulidades e Extinção que exige a iniciativa do Poder Executivo e a aprovação do Poder Legislativo, como ponderado na ADC nº 39 e na ADI nº 1.625. Seria juridicamente impossível, portanto, que o tratado fosse revogado ou tivesse sua eficácia contida pela legislação interna à revelia do devido processo legislativo.

Apenas para que não deixe de ser dito, já que tal questão certamente será suscitada para o IS, o IBS e a CBS: é juridicamente irrelevante que a instituição desses tributos e sua base de cálculo tenha sido feita através de uma Lei Complementar que foi exigida pela Constituição Federal, de certa forma em uma sistemática própria se comparada ao fluxo de positivação mais comum para tributos. Como já decido nas Cortes Superiores[7], não há hierarquia entre Leis Complementares e Leis Ordinárias, apenas reserva de assuntos, inexistindo justificativa para que uma nova Lei Complementar se exima de cumprir a RTN do GATT.

Assim, embora siga não existindo hierarquia formal entre lei ordinária e tratados internacionais, é ilegítimo afastar a aplicação da RTN do GATT para qualquer tributo aduaneiro, ainda que as normas de instituição sejam posteriores a ele. Devem ser rechaçadas as inclusões incompatíveis com essa regra, estejam elas nos tributos atuais (IPI e ICMS) ou nos que os sucederão em breve (IS, IBS e CBS).

Conclusão

A base de cálculo dos novos tributos incidentes na importação merece ser questionada judicialmente, até por ser a repetição de um problema já conhecido da sistemática que ela veio para substituir. Felizmente, como as regras estão sendo conhecidas com substancial antecedência do início de sua materialização, o contencioso poderá se desenvolver sem o caos e os problemas concorrenciais causados pela chuva de pedidos liminares com múltiplas decisões conflitantes. O Poder Judiciário terá tempo hábil para alcançar serenamente uma posição sem pressões para interromper ou continuar uma cobrança.

Torço para que o desfecho seja a consagração da Regra de Tratamento Nacional do GATT, inclusive porque nossa nova sistemática de tributação, ao ser substancialmente mais simples e direta do que a atual, facilita sua compreensão por outros países, que podem vir a perceber que há algum tempo o Brasil viola seus compromissos internacionais ao efetivar uma tributação não-equivalente na importação. Ainda há tempo de evitar que sejamos alvo de novos questionamentos pelos países signatários do GATT no âmbito da OMC.


[1] Ainda que o fim da prática de inclusão de tributos na base de cálculo de outros tenha sido um mote originário da Reforma Tributária.

[2] O que dá força às discussões atuais, por ser uma prova de que a previsão residual, ao contrário do que alegam os Estados, era insuficiente.

[3] Sem abordar o debate sobre o que fazer quando o “valor aduaneiro” supera as adições comerciais ao “valor de operação” (v.g. frete, seguro, capatazia etc.).

[4] Considerando que as expressões “valor aduaneiro” e “valor da operação” são equivalentes, ambas contendo preço, acréscimos, encargos, descontos condicionais, frete, seguros, taxas e tarifas.

[5] “7. Não há como equiparar, de modo absoluto, a tributação da importação com a tributação das operações internas. O PIS/PASEP-Importação e a COFINS -Importação incidem sobre operação na qual o contribuinte efetuou despesas com a aquisição do produto importado, enquanto a PIS e a COFINS internas incidem sobre o faturamento ou a receita, conforme o regime. São tributos distintos.”

[6] A título de exemplo: ARE nº 766.618 (Convenções Internacionais de Transporte Aéreo x CDC)

HC nº 72.131 (Convenção Americana de Direitos Humanos x Lei nº 4.728/65 e Decreto-Lei nº 911/69)

[7] A título de exemplo: RE nº 377.457 e 381.884, que tratou da revogação de isenção prevista em Lei Complementar por Lei Ordinária.

Autor

  • Thales Belchior

    Membro da Comissão de Política Fiscal e Proteção aos Contribuintes da OAB-RJ. Especialista em Direito Tributário pela FGV/Direito-RJ. Professor de Direito Tributário e Aduaneiro convidado na Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj). Advogado especializado em Direito Aduaneiro. Sócio da Veras Belchior Advocacia Aduaneira.

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