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Interação entre Preços de Transferência e Valoração Aduaneira

  1. Introdução

Nosso objetivo aqui é avaliar as regras de preços de transferência previstas no Brasil e verificar como os ajustes de preços na importação de bens tangíveis podem impactar o valor aduaneiro.

As regras de preços de transferência e a valoração aduaneira são normas antielisiva específicas, ambas fundamentadas no princípio arm’s lenght, mas que que têm objetivos distintos e métodos próprios.

As primeiras tratam da base de cálculo do imposto de renda da pessoa jurídica – IRPJ e da contribuição social sobre o lucro – CSLL e têm como finalidade impedir que haja transferência de lucros para o exterior, mediante a prática de preços inferiores aos de mercado, em transações com pessoas relacionadas e residentes no exterior. Aplicam-se ao pagamento de mercadorias, bens, serviços e direitos.

As normas de valoração aduaneira tem abrangência menor, pois visam determinar a correção do pagamento dos tributos incidentes na importação de mercadorias, para que não haja manipulação artificial com finalidade elisiva.

Apesar do escopo distinto, há uma intersecção entre as regras de preços de transferência e as normas de valoração aduaneira que deve ser avaliada de modo cuidadoso: ambas tem o potencial de modificar o preço das mercadorias e bens importados.

 

  1. Principais Pontos das Regras de Preços de Transferência Brasileiras

Como sabemos, em 2023, o Brasil introduziu novas regras de preços de transferência (Lei 14.596/2023 e Instrução Normativa 2.161/2023), alinhadas com as práticas da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE e ao Princípio da Arm’s Lenght.

Pelas novas regras, os contribuintes brasileiros devem realizar análises de benchmarking para comparar transações controladas com transações similares entre partes independentes. Essa comparação indicará se são necessários ajustes ao calcular o imposto de renda.

Os contribuintes devem aplicar o método mais apropriado previsto na Lei 14.596/2023, dentre as seguintes opções:

  1. a) PIC – Preço Independente Comparável (CUP – Comparable Uncontrolled Prices);
  2. b) PRL – Preço de Revenda menos Lucro (RPM – Resale Price Method);
  3. c) Custo Mais Lucro (CPM – Cost Plus Method);
  4. d) MLT – Margem Líquida da Transação (TNMM – Transactional Net Margin Method);
  5. e) MLP – Divisão do Lucro (PSM – Profit Split Method); ou
  6. f) Outros métodos prescritos pelas autoridades fiscais.

Quando o preço praticado nas importações ou exportações de bens tangíveis realizada entre partes relacionadas não está de acordo com o preço apurado pelo método mais adequado, as empresas residentes no Brasil  devem realizar os ajustes necessários à base de cálculo do IRPJ/CSLL por meio de:

  1. a) Ajustes espontâneos: diretos na base de cálculo do IRPJ/CSLL para adicionar ao resultado a diferença entre o valor pago e aquele de acordo com as regras brasileiras;
  2. b) Ajustes compensatórios: no valor da transação até o final do exercício fiscal, para que o valor da transação esteja de acordo com o princípio arm’s lenght;
  3. c) ajuste primário: efetuado pelas autoridades fiscais para adicionar à base de cálculo os resultados das operações de acordo com as leis brasileiras.

Os ajustes espontâneos ou primários representam uma adição ao lucro real do contribuinte residente no Brasil.

Os ajustes espontâneos ou compensatórios são obrigatórios quando resultam aumento do lucro real[1]. O valor pago pela empresa residente no Brasil por mercadorias, serviços, intangíveis ou outros arranjos entre partes relacionadas resultaram uma receita menor do que deveriam, ou uma despesa maior do que deveriam.

Ajustes compensatórios que reduzem o lucro real das empresas residentes no Brasil somente serão aceitos de acordo com os prazos e condições estabelecidos pela Receita Federal do Brasil.

Ajustes espontâneos e primários devem ser refletidos na base de cálculo do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) ao final do ano (Instrução Normativa, Artigo 49, §5).

Ajustes compensatórios feitos pelas partes relacionadas devem ser acompanhados de nota de débito, de crédito ou documentação fiscal e comercial, conforme o caso, que indique a natureza do ajuste.

 

  1. Possível Impacto dos Ajustes de Preços de Transferência nos Tributos Aduaneiros

O Artigo 51 da Instrução Normativa 2.161/2023 determina que a implementação de ajustes espontâneos ou compensatórios não resultará automaticamente na alteração da base de cálculo de outros tributos, incluindo aqueles relacionados à importação de bens e serviços. Esses tributos devem ser calculados de acordo com a legislação aplicável a cada um.

Isso significa que os ajustes de preços de transferência podem impactar outros tributos indiretos se alterarem a base de cálculo definida pela legislação brasileira. No Brasil, a importação de bens está sujeita aos seguintes tributos:

  • Imposto de Importação (II): Aplicado sobre o valor aduaneiro a uma alíquota variável (ad valorem).
  • IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados): Aplicado sobre o valor aduaneiro acrescido do imposto de importação, com alíquota variável (ad valorem).
  • PIS/COFINS: Aplicado sobre o valor aduaneiro, geralmente à alíquota de 9,25%.
  • ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços): Aplicado sobre o valor aduaneiro acrescido do imposto de importação e do IPI, à alíquota de 18% (no Estado de São Paulo).

Em resumo, os tributos incidentes sobre a importação são calculados com base no “valor aduaneiro”.

O conceito de valor aduaneiro, segundo o Acordo de Valoração Aduaneira da OMC (AVA-GATT), é definido como:

“1. O valor aduaneiro das mercadorias importadas será o valor de transação, ou seja, o preço realmente pago ou a pagar pelas mercadorias em uma venda para exportação ao país importador, ajustado de acordo com as disposições do Artigo 8.”

A Instrução Normativa 2.090/2022 estabelece que os “preços realmente pagos ou a pagar” incluem todos os pagamentos feitos ou a serem feitos—direta ou indiretamente—como condição da venda dos bens sujeitos à valoração. Isso inclui pagamentos do comprador ao vendedor ou a terceiros para satisfazer obrigações do vendedor (Artigo 5º).

A Organização Mundial das Aduanas recomenda uma abordagem uniforme que reflita os preços de acordo com as regras de preços de transferência, no valor aduaneiro das mercadorias[2].

A avaliação das consequências de ajustes de preços de transferência no impacto dos tributos aduaneiros deve ser feita com bastante cautela e de modo casuístico.

Ajustes iniciados pelos contribuinte (ajustes espontâneos ou compensatórios) podem refletir no valor aduaneiro, a depender do método e dos termos do contrato entre as partes.

Por outro lado, em geral, os ajustes primários determinados pela administração tributária afetam apenas a base de cálculo de IRPJ e CSLL e não implicam alteração do preço efetivamente pago ou a pagar pelas mercadorias[3].

Ajustes espontâneos ou compensatórios, quando considerados como preço efetivamente pago ou a pagar pelas mercadorias importadas, podem impactar o valor aduaneiro dos produtos importados. Nesse caso, mesmo se feitos após o desembaraço aduaneiro, tais ajustes espontâneos ou compensatórios devem ser respaldados em notas-fiscais complementares e, consequentemente, podem ser considerados como parte do valor aduaneiro.

 Aliás, ainda que os ajustes sejam efetuados por notas de débito/crédito (ou seja, sem alteração no valor pago pelas mercadorias), as autoridades aduaneiras podem interpretá-los como um reconhecimento de que o preço original não estava em conformidade com o princípio arm’s lenght e que os respectivos ajustes deveriam ser refletidos no valor aduaneiro[4].

Outra situação que afeta o valor aduaneiro declarado pelo importador é a existência de cláusula de revisão de preço prevista em contrato. Essa cláusula típica determina que o preço inicial é fixado provisoriamente no momento da importação e, sua determinação final dependerá de fatores estabelecidos nas disposições do próprio contrato (por exemplo, para atingir uma margem de lucro pré-determinada). Nesse cenário o preço declarado como valor aduaneiro, no momento da importação, será considerado provisório e estará sujeito a ajustes posteriores. Consequentemente, os contribuintes deverão fazer os ajustes do valor aduaneiro nas declarações de importação e pagar eventuais diferenças de tributos.

Importante lembrar que a IN 2090/2022, art. 4º, IV, impede que o valor da transação seja utilizado como valor aduaneiro quando há vinculação entre as partes (importador e exportador). E, seu art. 6º, determina que compõem o valor aduaneiro outros pagamentos efetuados ao exportador após a importação, por exemplo, comissões ou corretagens, royalties, direitos de licença, qualquer parcela do resultado de qualquer revenda, cessão ou utilização subsequente da mercadoria importada, que reverta direta ou indiretamente ao vendedor.

Ademais, a IN 2090/2022 expressamente permite uso de métodos e relatórios de preços de transferência para (a) identificar se a vinculação entre as partes influenciou o preço praticado, (b) aplicar o 6º método de valoração aduaneira e (c) justificar duvidas da fiscalização aduaneira em relação ao valor aduaneiro declarado (artigos 4, §6; 17 e 28, inciso VI).

E o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) admite que as autoridades fiscais utilizem informações as preços de transferência para cobrar impostos sobre importações (Acórdãos 3201-009.605 e 3201-011.909).

Assim sendo, é necessária cautela e um exame detido para identificar se o ajuste de preço de transferência pode resultar uma modificação no preço efetivamente pago pelas mercadorias. Em caso positivo, esse ajuste deve ser devidamente refletido na correspondente Declaração de Importação (DI), em conformidade com as normas aplicáveis (Instrução Normativa 680/2006, Artigo 45, II).

O importador é responsável por registrar a Declaração de Importação, informando o valor aduaneiro dos bens importados. Se for constatado que o preço informado está incorreto, o importador deve comunicar a Receita Federal e corrigir a Declaração de Importação (Instrução Normativa 680, Artigo 45, II).

Assim sendo, se houver ajuste que impacte o valor aduaneiro, cabe ao importador efetuar as alterações necessárias no Siscomex, pagar os tributos recalculados (com acréscimos à taxa Selic) e arcar com multas aplicáveis. Caso o importador não pague voluntariamente a diferença de tributos, a Receita Federal pode lavrar auto de infração, exigindo o pagamento adicional, acrescido de multa de 75%, Selic e outras penalidades por descumprimento das normas aduaneiras.

Portanto, diante de ajustes espontâneos, compensatórios ou revisão contratual de preços, os importadores poderão arcar com custo alto do pagamento de diferenças de tributos aduaneiros, bem como o custo de compliance decorrente da retificação de suas declarações aduaneiras, contábeis e fiscais.

[1]Lei 14.596/2023: “Art. 17(…) § 1º A pessoa jurídica domiciliada no Brasil efetuará o ajuste espontâneo ou compensatório quando o descumprimento do disposto no art. 2º desta Lei resultar na apuração de base de cálculo inferior àquela que seria apurada caso os termos e as condições da transação controlada tivessem sido estabelecidos de acordo com aqueles que seriam estabelecidos entre partes não relacionadas em transações comparáveis.

(…)

  • 5º A vedação prevista no § 4º deste artigo não será aplicada nas hipóteses de ajustes compensatórios realizados na forma e no prazo estabelecidos pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil ou de resultados acordados em mecanismo de solução de disputas previstos nos acordos ou nas convenções internacionais para eliminar a dupla tributação dos quais o Brasil seja signatário.”

 

[2] “It is desirable therefore that the Customs community strives to achieve a more consistent approach when considering the impact of transfer pricing adjustments on the Customs value.”

World Customs Organization (2018). WCO guide to customs valuation and transfer pricing. https://www.wcoomd.org/-/media/wco/public/global/pdf/topics/key-issues/revenue-package/wco-guide-to-customs-valuation-and-transfer-pricing.pdf?db=web

[3] World Customs Organization (2018). WCO guide to customs valuation and transfer pricing. Op. cit. p. 69

[4]“If, on the other hand, the adjustment takes place after importation of the goods, (i.e. it is recorded in the accounts of the taxpayer and the debit/credit note issued after Customs clearance of the goods), then Customs may consider that the Customs value is to be determined on the basis of the adjusted price, applying the principles established in Commentary 4.1.

Regarding transfer pricing adjustments which affect only the tax liability (i.e. no actual change to the amount paid for the goods), Customs may consider whether this is an indication of price influence. In other words, there is an acknowledgement that the original price was not arm’s length for transfer pricing purposes but the price actually paid has not been adjusted.” (World Customs Organization (2018). WCO guide to customs valuation and transfer pricing. Op. Cit. p. 70.)

*Este artigo reflete as opiniões do (a) autor (a), e não do Instituto de Pesquisas em Direito Aduaneiro – IPDA.
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