Interposição Fraudulenta Comprovada – Teoria e Prática

O comércio exterior brasileiro tem apresentado números cada vez mais expressivos. A primeira previsão para a balança comercial em 2025, divulgada pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (Mdic)[1], estima que, este ano, as importações deverão atingir um patamar entre US$ 260 bilhões e US$ 280 bilhões, um aumento de cerca de 6,6% em relação a 2024.

Em um cenário no qual as operações de comércio exterior têm sido vitais para o desenvolvimento da economia nacional, alguns assuntos ganham relevância, como, por exemplo, as autuações promovidas pela Receita Federal acusando intervenientes da prática de interposição fraudulenta.

A globalização das cadeias de suprimento e a busca por maior eficiência operacional aumentaram a complexidade das operações de comércio exterior, o que, inegavelmente, demanda maior controle fiscal e aduaneiro. Por outro lado, também parece estar havendo uma aplicação generalizada da sanção de perdimento em situações nas quais não se verificam os elementos típicos da interposição fraudulenta.

Há duas modalidades de interposição fraudulenta, previstas no artigo 23 do Decreto-Lei nº 1.455/76 e no artigo 689 do Regulamento Aduaneiro: (i) presumida, que se caracteriza pela ausência de comprovação da origem, disponibilidade e transferência dos recursos empregados nas operações; e (ii) comprovada, que se caracteriza pela ocultação do sujeito passivo, real vendedor, comprador ou responsável por uma operação de importação ou exportação, mediante fraude ou simulação, inclusive a interposição fraudulenta de terceiros.

Ambas as infrações caracterizam-se como dano ao erário e são puníveis com a pena de perdimento da mercadoria. Caso as mercadorias não sejam localizadas ou tenham sido consumidas ou comercializadas, a pena de perdimento é convertida em multa equivalente ao valor aduaneiro das mercadorias.

Embora não se pretenda esgotar a matéria, é válido trazer algumas ponderações sobre a aplicação indiscriminada de uma penalidade que, em razão da sua própria gravidade, deveria ser aplicada de maneira criteriosa e seguindo os ditames legais – o que, como veremos adiante, não necessariamente acontece. A análise será focada na modalidade comprovada de interposição fraudulenta.

Requisitos da Interposição Fraudulenta Comprovada

Como o próprio nome indica, a “interposição fraudulenta comprovada” requer comprovação. Assim, em uma acusação fundamentada nesse tipo infracional, o Fisco não pode se limitar a alegar que os atos praticados pelas partes teriam resultado em ocultação do real responsável pelas operações de comércio exterior. É necessário que haja a inequívoca comprovação do dolo das partes em promover a ocultação deste responsável mediante fraude ou simulação.

O referido tipo infracional apresenta os seguintes requisitos essenciais para a sua caraterização:

Ocultação da parte nas operações de comércio exterior: deve haver a comprovação de que o real responsável pelas operações de comércio exterior foi indevidamente ocultado dos controles aduaneiros.

Em termos jurídicos, “a ocultação implica, em regra, a intenção de esconder a verdade sobre os fatos ou a realidade das coisas, a fim de que se atende contra princípio jurídico instituído ou se consigam resultados, que não se teriam, se conhecida a verdade ou aquilo que se ocultou [2].

Portanto, ocultação é a ação ou omissão deliberada e proposital, com o objetivo de esconder algo ou alguém de outrem. Ademais, se a acusação de ocultação for ainda qualificada pela forma de uma “interposição fraudulenta de terceiros”, o Fisco deve, então, comprovar essa interposição.

Utilização de meio fraudulento ou simulado: uma vez demonstrada a ocultação, deve-se comprovar que esta se deu por meio de fraude ou simulação.

A fraude tem definição legal e apenas estará configurada se for comprovada da forma expressamente prevista na legislação. Na esfera civil, o conceito de fraude baseia-se na prática de ato lesivo a interesses de terceiros. Ou seja, o sujeito que atua de forma fraudulenta é aquele que tem a intenção de frustrar regras e deveres legais.

No âmbito tributário, a caracterização da fraude depende da comprovação da intenção dolosa de mascarar ou disfarçar a ocorrência do fato gerador, nos termos do artigo 72 da Lei nº 4.502/64[3].

Da análise da legislação vigente, é possível concluir que a fraude à lei se verifica apenas nos casos em que o contribuinte se vale de meios ilícitos para evitar a tributação ou burlar os controles aduaneiros, como ocorre nos casos de falsificação de documentos, contabilização de notas fiscais em duplicidade, burla ao licenciamento, esconder contrafação, etc.

Para que haja a configuração da fraude, é imprescindível que esteja presente o elemento subjetivo do tipo, ou seja, o dolo. Para se determinar o elemento doloso, deve-se examinar se o sujeito passivo tinha conhecimento do ilícito e a vontade de enganar.

Por sua vez, a simulação, prevista no Código Civil como causa de invalidade do negócio jurídico, pode ser conceituada como como a divergência entre a vontade real das partes envolvidas e a vontade declarada.

Em maiores detalhes, “o artifício ou o fingimento na prática ou na execução de um ato, ou contrato, com a intenção de enganar ou de mostrar o irreal como verdadeiro, ou lhe dando aparência de não possuir (…) No sentido jurídico, sem fugir ao sentido normal, é o ato jurídico aparentado enganosamente ou com fingimento, para esconder a real intenção ou para subversão da verdade. Na simulação, pois, visam sempre os simuladores a fins ocultos para engano ou prejuízo de terceiros[4].

Assim, há simulação quando o ato existe apenas de forma aparente, quando é fictício e serve para encobrir/disfarçar uma declaração real da vontade, ou simular a existência de uma declaração que não se fez. É uma declaração enganosa da vontade, visando produzir efeito diverso daquele indicado.

Nesta modalidade de interposição fraudulenta, não há espaço para presunções. O Fisco deve levantar um conjunto de elementos que faça prova do dolo dos agentes envolvidos e do intuito de enganar a Administração Pública. O ônus da prova pertence exclusivamente à Fiscalização.

Demonstração de dano ao erário: caso os dois elementos acima sejam comprovados, deverá haver também a demonstração do danoao erário.

Embora seja possível alegar que, em se tratando de infração de mera conduta, não haveria necessidade de comprovação de dano ao erário, o próprio CARF possui decisões indicando que, ao analisar “o dano ao erário nas infrações aduaneiras, é necessário que o potencial de dano seja minimamente verossímil. O dano ao erário, ainda que objetivo, não pode ser utópico[5].

Não se pretende, de forma alguma, minimizar a importância do controle do comércio exterior como instrumento de defesa dos interesses nacionais. Contudo, a aplicação da penalidade mais severa do ordenamento jurídico não pode prescindir de uma aferição a respeito da concretização da hipótese prevista na norma e da efetiva caracterização de dano ao controle aduaneiro ou mesmo ao erário.

Autuações e Jurisprudência da Interposição Fraudulenta Comprovada

Apesar de a legislação ter sido clara quanto aos elementos caracterizadores da interposição fraudulenta na modalidade comprovada, não raras vezes vemos esses conceitos legais serem distorcidos e operações perfeitamente legítimas serem desconsideradas, sem que estejam presentes os elementos do tipo infracional.

Nos últimos anos, foi possível observar a lavratura de inúmeros autos de infração em que o Fisco ignorou que a interposição fraudulenta depende, necessariamente, da comprovação dos elementos caracterizadores acima mencionados e utilizou largamente o instituto da presunção legal para promover tais autuações, ignorando o seu ônus de comprovar o dolo nessas situações.

A título exemplificativo, vale mencionar alguns exemplos recentes. O primeiro deles é o emblemático “Caso Cargill”[6] (Acórdão nº 3201-005.152).

Na operação em questão, a Cargill exportou produtos para a sua filial em Turks & Caicos, onde os grãos eram revendidos para outras empresas ao redor do mundo. Como a referida filial não possuía estabelecimento físico, o Fisco entendeu que a Cargill teria realizado operações de exportação mediante interposição fraudulenta, ocultando os reais compradores das mercadorias exportadas, burlando os controles aduaneiros e transferindo o fluxo financeiro e operacional para um paraíso fiscal, o que resultaria em dano ao erário.

Ao analisar o caso, o CARF entendeu que não houve a alegada fraude ou ocultação, uma vez que a filial possuía substância econômica e propósito negocial compatíveis com suas operações, devidamente demonstrados por meio da documentação pertinente (i.e., contrato de compra e venda da matriz para a filial, tratativas comerciais firmadas entre a filial no exterior e os compradores, contabilidade, escrita fiscal, recolhimento dos tributos e regularidade fiscal e societária da filial). Também entendeu-se pela falta de comprovação da intenção dolosa da empresa em ocultar informações relevantes. Ambos os fatores levaram ao cancelamento da autuação.

Outro caso que vale menção diz respeito ao Acórdão nº 3401-013.384.  Em operações de importação promovidas por uma trading company, por encomenda de um terceiro (que industrializava as mercadorias importadas e, depois, as revendia para a empresa acusada), a Fiscalização entendeu que o real adquirente das mercadorias importadas seria a empresa acusada e que esta teria sido indevidamente ocultada dos controles aduaneiros.

Embora a Fiscalização tenha alegado que houve um complexo mecanismo com o objetivo de diminuir a base tributável de impostos incidentes e ocultar das autoridades nacionais a cadeia de comando das operações comerciais, ao analisar o caso, o CARF entendeu que não havia provas de fraude ou simulação que justificassem a autuação por interposição fraudulenta e cancelou a autuação.

O entendimento do CARF baseou-se nos seguintes elementos: (i) as movimentações financeiras refletiam operações reais, opondo-se a qualquer simulação ou fraude, (ii) todas as empresas envolvidas possuíam capacidade econômica e operacional para realizar as operações, (iii) os contratos firmados entre as partes eram legítimos e revelavam a efetiva intenção das mesmas, devidamente materializada nas transações realizadas, e (iv) a escolha por um determinado modelo de negócios, ainda que possa decorrer de um planejamento tributário, não configura interposição fraudulenta nos casos em que há substância econômica e propósito negocial para a adoção de tal estrutura.

O que os casos acima têm em comum é que as autoridades fiscais, por não compreenderem (ou discordarem) do modelo de negócios adotados pelos contribuintes, passaram a questionar operações absolutamente regulares mesmo sem qualquer prova de fraude ou simulação.

Como os exemplos acima, podem ser citados centenas de outros em que as autoridades fiscais utilizaram indevidamente o instituto da interposição fraudulenta comprovada para questionar e tentar desconsiderar estruturas de negócios legítimas, que possuem substância econômica e o propósito negocial.

Naturalmente, não se ignora a dificuldade que as autoridades fiscais têm para comprovar determinadas condutas. Como bem apontado por Leonardo Branco, “nem sempre será simples se demonstrar o ardil simulatório tendente a ocultar o real adquirente de uma mercadoria, e raramente haverá uma “prova cabal”, ou seja, aquela suficientemente irrefutável e dotada de aptidão para, sozinha, formar, de maneira satisfatória e juridicamente eficiente, o convencimento[7].

Contudo, a aplicação da penalidade mais grave do nosso ordenamento jurídico em decorrência de indeterminações conceituais e sem a demonstração da fraude, simulação ou dolo, além de extrapolar o principal objetivo da aplicação de qualquer penalidade aduaneira, que é justamente evitar a burla ao controle aduaneiro ou impedir a incidência tributária, gera um cenário de absoluta insegurança jurídica e econômica no País.

A lavratura de autos de infração fundamentados exclusivamente em presunções legais traz efeitos jurídicos e econômicos demasiadamente danosos aos contribuintes. Isso sem contar as implicações criminais às quais os administradores das empresas estão sujeitos, uma vez que a interposição fraudulenta é considerada crime contra a ordem tributária, motivo pelo qual, além do auto de infração, as autoridades fiscais promovem a representação fiscal para fins penais ao Ministério Público.

O cenário acima evidencia que a conduta do Fisco de questionar estruturas/operações legítimas e presumir a má-fé dos contribuintes, sem a comprovação dos elementos caracterizadores da interposição fraudulenta vai na contramão de todos os esforços que têm sido feitos para estimular o crescimento econômico do Brasil.

Basta lembrar que, há poucos anos, foi publicada a Lei nº 13.874/19, que instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica e garantiu flexibilidade às partes privadas para a estruturação de seus negócios, desde que a estrutura adotada fosse lícita em sua forma e conteúdo e fosse efetivamente implementada.

Além disso, o Brasil é signatário do Acordo de Facilitação do Comércio da OMC, da Convenção de Quioto Revisada e do Acordo sobre Facilitação de Investimentos para o Desenvolvimento da OMC, todos instrumentos que têm como objetivo incentivar o comércio internacional, desburocratizar e agilizar os procedimentos aduaneiros, garantir boas práticas internacionais, etc.

Se não há segurança de que os entes privados podem estruturar e exercer seus negócios da forma que melhor convier à realidade de suas atividades, sem que sejam questionados, autuados e, eventualmente, responsabilizados criminalmente, não há como garantir o livre exercício da atividade econômica no País e, consequentemente, não se pode esperar o aumento da competitividade do Brasil no cenário mundial.

Conclusão

É inegável que os órgãos de fiscalização têm o dever de fiscalizar os contribuintes, porém só podem fazê-lo dentro dos parâmetros legais. Porém, temos visto abusos na fiscalização das operações de comércio exterior e na imposição de penalidades aduaneiras, especialmente, a pena de perdimento das mercadorias.

Neste cenário, os Tribunais vêm exercendo um importante papel no sentido de assegurar o direito dos contribuintes de estruturarem suas atividades da maneira que melhor lhes convier – desde que respeitados os limites legais – e frear os excessos fiscais, evitando que prosperem autuações arbitrárias embasadas em interpretações enviesadas sobre qualquer operação que fujam do comum/padrão.

Apesar do relevante papel dos Tribunais, é essencial que os contribuintes estejam atentos a seus procedimentos internos e ao cumprimento de suas obrigações acessórias, a fim de evitar questionamentos e/ou sanções indevidas.


[1] https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2025-02/superavit-da-balanca-comercial-cai-651-em-janeiro#:~:text=Estimativa,bilh%C3%B5es%20e%20US%24%20280%20bilh%C3%B5es

[2] SILVA, DE PLÁCIDO E. VOCABULÁRIO JURÍDICO, 32ª ED., RIO DE JANEIRO: FORENSE, 2016, PÁG. 982

[3] “Art . 72. Fraude é tôda ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, ou a excluir ou modificar as suas características essenciais, de modo a reduzir o montante do impôsto devido a evitar ou diferir o seu pagamento.”

[4] SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. Ed. Forense, 1990.

[5] CARF, Acórdão nº 3201-005.152.

[6] Disponível em <https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2019/03/27/cargill-consegue-no-carf-cancelar-autuacao-fiscal-de-r-10-bilhoes.ghtml>

[7] Disponível em <https://www.conjur.com.br/2024-set-10/ocultacao-do-adquirente-e-interposicao-fraudulenta-ha-modalidade-culposa/>

Autor

  • Cora Mendes

    Advogada. Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-Graduada em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP) e em Direito Tributário Internacional pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT/SP).

    Ver todos os posts

*Este artigo reflete as opiniões do (a) autor (a), e não do Instituto de Pesquisas em Direito Aduaneiro – IPDA.
O IPDA não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações.