“Economists of every persuasion are convinced that free trade is superior to trade protection”[1]
(Robert Gilpin)
Paula Ventura e Ranier Coimbra*
As bases do funcionamento do comércio internacional passam por um momento de inflexão. Com o advento do Acordo Geral de Tarifas e Comércio de 1947 (GATT 1947), que posteriormente culminou na criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) em 1995, tornou-se consenso que o comércio internacional deveria se pautar pelos princípios de não-discriminação, previsibilidade, concorrência leal, proibição de restrições quantitativas e tratamento especial e diferenciado para países em desenvolvimento[1]. Trata-se de um conjunto de princípios estabelecidos com o objetivo de tornar o comércio internacional mais livre e mais justo.
Apesar disso, o protecionismo aduaneiro — expresso pela criação de barreiras tarifárias — tem se tornado cada vez mais comum nas discussões políticas e econômicas. Diante de sucessivos “tarifaços” e “retaliações”, que dependem sobretudo da definição da origem dos produtos, torna-se essencial entender quais regras determinam essa origem. Nosso objetivo é compreender como o direito aduaneiro estabelece o país de origem das mercadorias, já que essa definição pode influenciar diretamente a aplicação de barreiras tarifárias e não tarifárias
Regras de origem
As regras de origem correspondem aos critérios adotados por países ou blocos econômicos para identificar a nacionalidade efetiva de uma mercadoria. São elas que permitem determinar onde um produto foi realmente fabricado ou substancialmente transformado. De modo geral, essas regras se dividem em duas categorias: preferenciais e não preferenciais.
Regras de origem preferencial
As regras de origem preferencial são aquelas negociadas entre países signatários de acordos comerciais, e seu cumprimento é requisito para que o produto possa usufruir de reduções ou isenções tarifárias. Assim, apenas as mercadorias que atendem plenamente aos critérios de origem previstos nesses acordos podem se beneficiar do tratamento tarifário diferenciado.
O cumprimento dessas regras assegura que as vantagens concedidas sejam direcionadas exclusivamente aos países signatários, evitando que mercadorias de fora do bloco se beneficiem indevidamente. Dessa forma, garante-se que os países-membros obtenham ganhos reais tanto em termos de produção interna quanto de incremento no comércio entre si.
Regras de origem não preferencial
Por sua vez, as regras de origem não preferencial constituem o conjunto de normas de aplicação geral utilizado pelo país importador para definir a procedência de bens que não estão vinculados a acordos ou regimes tarifários preferenciais. Servem, por exemplo, para fins estatísticos, de defesa comercial ou de controle de medidas restritivas.
Um exemplo de regra de origem não preferencial são as tarifas impostas pelo governo de Donald Trump nos Estados Unidos, conhecidas como “tarifaço”. Essas medidas aumentaram a vigilância sobre a origem dos produtos para evitar que empresas burlassem as tarifas por meio da triangulação comercial[2].
No Brasil, em âmbito interno, o art. 9º, do Decreto-Lei nº 37/1966, estabelece que “respeitados os critérios decorrentes do ato internacional de que o Brasil participe, entender-se-á por país de origem da mercadoria aquele onde houver sido produzida ou, no caso de mercadoria resultante de material ou mão-de-obra de mais de um país, aquele onde houver recebido transformação substancial.”
Atualmente, as regras que definem os critérios essenciais para determinar o local onde a mercadoria foi produzida ou tenha sofrido transformação substancial, estão disciplinadas pela Lei nº 14.195/2021 – arts. 28 a 45 – que alterou a “Seção III – Da Origem não Preferencial” da Lei nº 12.546/2011. Essas regras podem ser assim sintetizadas:
- Mercadorias produzidas
Considera-se “produzida” no país a mercadoria:
- Totalmente obtida em seu território, incluindo produtos vegetais, animais, minerais, da pesca, do mar e do espaço, bem como mercadorias fabricadas apenas com esses materiais;
- Elaborada inteiramente no território nacional, utilizando exclusivamente insumos nacionais.
- Transformação substancial
Há “transformação substancial” quando:
- O processo industrial confere ao produto nova individualidade, com mudança de posição tarifária (os quatro primeiros dígitos da NCM) em relação aos insumos utilizados; ou
- O valor dos insumos importados não ultrapassa 50% (cinquenta por cento) do valor Free on Board (FOB) do produto industrializado.
Se esse limite for superado, a mercadoria será considerada originária do país de onde provêm os insumos com maior participação no valor FOB.
- Operações insuficientes
Não se reconhece origem nacional quando as operações realizadas consistirem apenas em montagem, embalagem, fracionamento, seleção, marcação, simples diluição ou processos equivalentes, ainda que alterem os quatro primeiros dígitos da NCM ou tenha sido produzido com insumos cujo valor aduaneiro não supere o limite de 50%.
Brasil: Procedimentos de verificação e provas de origem
Em termos materiais, a Lei nº 12.546/2011 delimita o conceito de transformação substancial e elenca operações simples que, mesmo que resultem em mudança de classificação tarifária, não caracterizam origem, como mera montagem, embalagem ou fracionamento. O procedimento da Portaria 87/2021 opera exatamente para aferir, com documentos e eventualmente visita técnica, se a realidade produtiva do exportador/produtor estrangeiro é compatível com as regras brasileiras de origem não preferencial.
Casos práticos
Em 2021, foi encerrado procedimento especial de verificação de origem com a desqualificação de objetos de louça para mesa declarados como originários da Malásia. Nesse caso, determinou-se que esses produtos seriam considerados como originários da República Popular da China [3].
Em 2022, foi encerrado procedimento especial de verificação de origem com a desqualificação de calçados com origem declarados como originários de Taiwan. Nesse caso, também se determinou que esses produtos seriam considerados como originários da República Popular da China[4].
A partir de 2024 e 2025, outros procedimentos especiais de verificação foram encerrados de forma negativa, no sentido de não reconhecer a origem declarada dos produtos. No setor gráfico, chapas off-set declaradas como originárias de Taiwan[5], no setor siderúrgico, laminados planos de aço ao silício (aço GNO) declarados como originários do Vietnã[6] e barras chatas de aço declarado como originárias de Hong Kong[7], foram considerados como originários da República Popular da China.
Em todos os casos mencionados, a declaração falsa quanto à origem dos produtos teve por finalidade afastar a aplicação do direito antidumping incidente sobre as mercadorias de origem chinesa.
Conclusão: Implicações práticas para importadores, exportadores e indústrias domésticas
Em nossa análise, foi possível constatar que as investigações nascem de denúncias de indústrias domésticas ou de apurações de ofício com base em análise de risco aplicada a fluxos de importação.
A análise dos procedimentos de verificação de origem demonstra que as empresas importadoras que atuam em cadeias sujeitas a medidas antidumping, ou que apresentaram alterações recentes na origem declarada de seus fornecedores, estão sob maior vigilância. Esses procedimentos podem ser instaurados diante de indícios de triangulação, montagem simples ou uso intenso de insumos provenientes de países sujeitos a medidas de defesa comercial, cabendo ao produtor estrangeiro comprovar que ocorreu efetiva transformação substancial no país declarado como origem.
Além disso, a análise dos casos nos mostra que a ausência de resposta ou respostas incompletas ao questionário são decisivas para conclusões desfavoráveis. Ou seja, para exportadores e produtores estrangeiros, é essencial manter documentação pronta e organizada que comprove o processo produtivo, a capacidade de fabricação e a origem dos insumos. Isso inclui registros de compras por código tarifário, processos e lotes de produção, layout da fábrica e dados de capacidade produtiva, além de disponibilidade para inspeção in loco quando solicitada. Declarações genéricas de origem, sem comprovação do atendimento aos critérios exigidos pela legislação brasileira, não satisfazem o padrão probatório adotado pela Secex.
Para a indústria doméstica, os precedentes validam o uso do canal de denúncia previsto na Portaria 87/2021 quando houver indícios consistentes de falsa declaração de origem que fragilize a efetividade de medidas de defesa comercial ou cause competição desleal.
[1] “Economistas de todos os matizes estão convencidos de que o livre comércio é superior à proteção comercial.” – tradução livre de GILPIN, Robert. Global Political Economy: Understanding the International Economic Order. Princeton University Press: Princeton, 2001, pag. 196
[2]A política de “tarifaço” de Trump, especialmente contra a China, fez crescer o chamado transbordo (ou transshipment) — prática em que produtos chineses são enviados a países do Sudeste Asiático para serem apenas reempacotados ou levemente processados antes de seguir aos EUA, com o objetivo de evitar as tarifas. – https://time.com/7300087/trump-us-vietnam-trade-deal-china-transshipments/; https://www.reuters.com/world/china/thailand-form-special-task-force-meet-strict-us-trade-rules-2025-09-03/;
[3] Portaria SECEX nº 155/2021
[4] Portaria SECEX nº 200/2022
[5] Portaria SECEX nº 344/2024
[6] Portaria SECEX nº 363/2024
[7] Portaria SECEX nº 380/2025
* Paula Ventura é advogada, bacharel em Direito pela Universidade Cândido Mendes. Pós-graduada em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/RJ).
*Ranier Coimbra é advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).