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Reflexões sobre o Tema Repetitivo nº 1.293 e a adequada aplicação da Súmula CARF nº 11

A 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) concluiu, em 12 de março de 2025, o julgamento do Tema 1293 dos Recursos Repetitivos, decidindo que incide a prescrição intercorrente no processo administrativo de apuração de infrações aduaneiras paralisado por mais de 3 anos, na forma prevista no artigo 1º, § 1º da Lei nº 9.873/1999.[1] A decisão terá um impacto significativo no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), onde milhares de processos envolvendo a apuração e exigência de multas aduaneiras aguardam julgamento, alguns deles há bem mais que 3 anos. A aplicação do precedente, contudo, não está livre de desafios.

O Tema 1293 decorreu do julgamento dos Recursos Especiais 2.147.578-SP[2] e 2.147.583-SP[3], de relatoria do Ministro Paulo Sergio Domingues, nos quais se discutiu a extinção de crédito decorrente de multa aplicada à transportadora pela não prestação ou prestação extemporânea de informação sobre veículo ou carga transportada, em razão da incidência da prescrição intercorrente trienal prevista na Lei nº 9.873/1999.

Andou bem o STJ ao decidir que o critério legal a ser observado para aplicar a prescrição intercorrente é a natureza jurídica da infração cometida, e não o rito procedimental adotado para sua apuração e constituição definitiva. O fato de as infrações aduaneiras estarem sujeitas ao mesmo rito de apuração e constituição definitiva aplicável aos créditos tributários, previsto no Decreto nº 70.235/1972, não altera sua natureza jurídica de direito administrativo, tampouco as equipara a infrações de natureza tributária, cujos respectivos processos e procedimentos são expressamente excepcionados da aplicação da prescrição intercorrente trienal pelo artigo 5º da Lei nº 9.873/1999. Com esse entendimento, o STJ fixou as seguintes teses para o Tema 1293:

1. Incide a prescrição intercorrente prevista no art. 1º, § 1º, da Lei n. 9.873/1999 quando paralisado o processo administrativo de apuração de infrações aduaneiras, de natureza não tributária, por mais de 3 anos.

2. A natureza jurídica do crédito correspondente à sanção pela infração à legislação aduaneira é de direito administrativo (não tributário) se a norma infringida visa primordialmente ao controle do trânsito internacional de mercadorias ou à regularidade do serviço aduaneiro, ainda que, reflexamente, possa colaborar para a fiscalização do recolhimento dos tributos incidentes sobre a operação.

3. Não incidirá o art. 1º, § 1º, da Lei n. 9.873/1999 apenas se a obrigação descumprida, conquanto inserida em ambiente aduaneiro, destinava-se direta e imediatamente à arrecadação ou à fiscalização dos tributos incidentes sobre o negócio jurídico realizado.

As teses firmadas sob a sistemática dos recursos repetitivos aplicam-se a partir da publicação do acórdão paradigma, o que, no caso do Tema 1293, ocorreu em 27 de março de 2025. No âmbito do CARF, porém, a reprodução de tais teses pelos conselheiros somente se inicia com o trânsito em julgado do acórdão respectivo, como prevê o artigo 99 do seu Regimento Interno, aprovado pela Portaria MF nº 1.634/2023. Diante de um (provável) pleito de modulação dos efeitos da decisão pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), a aplicação do Tema 1293 ainda pode levar alguns meses.

De toda forma, considerando o teor da Súmula CARF nº 11 (“Não se aplica a prescrição intercorrente no processo administrativo fiscal”), que nenhuma distinção traz quanto à natureza jurídica da infração subjacente, a aplicação da tese firmada pelo STJ não será livre de discussões, e não são poucos os pontos a serem considerados. Veja-se:

  1. Prescrição intercorrente como regra geral. Segundo a Lei nº 9.873/1999, prescreve em cinco anos o exercício de ação punitiva da Administração Pública Federal objetivando apurar infração à legislação em vigor, incidindo a prescrição no procedimento administrativo paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho. Trata-se de norma específica sobre prescrição, mas não de norma especial. De fato, está-se diante de norma de aplicação geral a todas as ações punitivas decorrentes do poder de polícia da Administração Pública Federal, excetuadas apenas as infrações de natureza funcional e os processos e procedimentos de natureza tributária.
  2. Aplicação da prescrição intercorrente a procedimentos e processos administrativos. Ouve-se aqui e acolá que seria necessário delimitar o campo de abrangência da Lei nº 9.873/1999, já que seu texto faz referência a ‘procedimento’ administrativo, enquanto a Súmula CARF nº 11 se refere a ‘processo’ administrativo. Espera-se que tal segregação integral dos conceitos seja afastada desde a origem, não só porque todo processo tem um procedimento, mas também e principalmente porque prescrição e prescrição intercorrente são institutos de direito material, não processual.[4]
  3. Necessário distinguishing na aplicação da Súmula CARF nº 11. Segundo a Teoria dos Precedentes, positivada no artigo 489, § 1º, V do CPC, as decisões que invocam precedente ou enunciado de súmula devem identificar seus fundamentos determinantes e o nexo causal com o caso sob julgamento. Essa análise é essencial ao deslinde da (in)aplicabilidade da Súmula CARF nº 11. Embora seja comum sua aplicação em processos em que se discute sanções de natureza administrativo-aduaneira,[5] todos os acórdãos elencados como paradigmas para elaboração da súmula têm origem em matéria tributária[6]. Esse fato, por si só, justifica a imediata diferenciação (distinguishing) dos casos envolvendo créditos não tributários, independentemente do trânsito em julgado da decisão do STJ.[7]
  4. Infrações Tributárias x Infrações Aduaneiras. As normas aduaneiras podem carregar, em si, referências a infrações de natureza tributária e não tributária. Segundo se extrai das teses firmadas no Tema 1293, têm natureza administrativo-aduaneiras as infrações que decorrem do descumprimento de norma voltada ‘primordialmente ao controle do trânsito internacional de mercadorias ou à regularidade do serviço aduaneiro’. Por outro lado, não têm essa natureza as infrações decorrentes do descumprimento de obrigação ‘destinada direta e imediatamente à arrecadação ou à fiscalização dos tributos’, ainda que inseridas em ambiente aduaneiro. Embora não definam o conceito de infrações aduaneiras, as teses jogam luz sobre uma gama de sanções ligadas ao comércio exterior e aplicadas independentemente do recolhimento dos tributos devidos. O Regulamento Aduaneiro (RA) traz várias delas, como as multas de 1% pela omissão ou prestação inexata ou incompleta de informação de natureza administrativo-tributária, cambial ou comercial (artigo 711, III), de 30% pela ausência de licença de importação (artigo 706, I) e de 100% substitutiva da pena de perdimento (artigo 689, § 1º), todas proporcionais ao valor aduaneiro da mercadoria. Outras sanções previstas no RA têm, de fato, relação direta com os tributos devidos, e decorrem, em sua maioria, de omissões e irregularidades em operações de importação das quais decorrem o não recolhimento ou o recolhimento a menor de tributos devidos, como nos casos de utilização indevida de regimes aduaneiros especiais e benefícios fiscais (artigo 702, I, a). Maior atenção, contudo, demandam os casos envolvendo multas regulamentares cobradas em conjunto com os tributos, como a de 1% por erro de classificação fiscal (artigo 711, I do RA) e a de 10% por descumprimento do regime de admissão temporária (art. 709 do RA). Imagine-se um caso em que o erro de classificação fiscal não impacta no montante dos tributos devidos na importação; será que o mero potencial de influenciar esse montante seria suficiente para afastar a natureza administrativo-aduaneiro da multa? Eis uma ótima oportunidade de aprofundamento do estudo das normas aduaneiras. Afinal, como sempre defenderam os estudiosos do tema, Direito Aduaneiro não é Direito Tributário!
  5. Processos e procedimentos de natureza tributária. Prescrição e prescrição intercorrente são matéria de lei. Inexistente previsão normativa sobre prescrição intercorrente nos procedimentos e processos administrativos de constituição de créditos tributários, é de se permanece aplicável a Súmula CARF nº 11, não sendo caso de overruling ou de superação do enunciado.
  6. Prescrição x Prescrição Intercorrente. Prescrição e prescrição intercorrente são institutos distintos, ainda que voltados ao mesmo objetivo. Enquanto o início do prazo de prescrição é marcado pelo fim do respectivo processo administrativo com a constituição definitiva do crédito, a prescrição intercorrente pressupõe a existência de um processo, no seio do qual a inércia continuada e ininterrupta da parte ativa fulmina o direito material postulado. Em se tratando de créditos tributários, aplicam-se as regras de suspensão da exigibilidade e de prescrição previstas nos artigos 151, III e 174 do Código Tributário Nacional (CTN), respectivamente. Já em relação aos créditos não tributários, sancionatórios, aplicam-se as regras de prescrição do artigo 174 do CTN e de prescrição intercorrente da Lei nº 9.873/1999; enquanto a primeira atinge a pretensão executória da Administração Pública, a segunda atinge a pretensão punitiva.
  7. Caracterização da inércia para fins de incidência da prescrição intercorrente. Nos termos da Lei nº 9.873/1999, incide a prescrição intercorrente no procedimento administrativo paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho, cujos autos serão arquivados de ofício ou mediante requerimento da parte interessada, sem prejuízo da apuração da responsabilidade funcional decorrente da paralisação, se for o caso. A contagem desse prazo trienal somente deve ser interrompida pela prática de ato inequívoco que importe a apuração do fato, não bastando movimentação processual constituída de meros despachos de encaminhamentos.
  8. Direito Fundamental à Razoável Duração do Processo. Por fim, embora seja, indiscutivelmente, o mais importante fundamento para aplicação da prescrição intercorrente, nenhuma análise deve passar ao largo do reconhecimento de que a injustificada demora no trâmite e decisão de processo implica em violação ao princípio da segurança jurídica e lesão ao direito fundamental à razoável duração do processo, positivado no inciso LXXVIII do art. 5º da Constituição Federal. Eventual resistência ou demora na aplicação do precedente firmado no Tema 1293, além de violar a Constituição, vai em sentido contrário à concretização da norma que exige estabilidade, integridade e coerência da jurisprudência, contida no artigo 926, caput, do CPC. A prescrição intercorrente é elemento essencial para a estabilidade das relações jurídicas, especialmente no âmbito dos processos tributários, em que deve ser assegurada “capacidade de o cidadão prever o espectro de consequências atribuíveis a atos ou a fatos e o espectro de tempo dentro do qual será definida a consequência aplicável”.[8] Merece destaque voto do Ministro Roberto Barroso proferido por ocasião do julgamento do Tema 390 da Repercussão Geral, no qual o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou constitucional o artigo 40 da Lei de Execuções Fiscais, reconhecendo-se que “o sistema jurídico, voltado à pacificação dos conflitos sociais, não pode conviver com a permanência, sem qualquer limite temporal, do poder persecutório do Estado em face dos indivíduos. Em outras palavras, a imprescritibilidade das relações jurídicas não é compatível como os princípios da segurança jurídica e do devido processo legal, considerando-se a necessidade de que as demandas sejam solucionadas em um tempo razoável.” Embora se trate de posição minoritária, há decisões judiciais reconhecendo a prescrição intercorrente para extinguir créditos tributários, baseadas estritamente na Constituição e na decisão do STF no Tema 390, inclusive no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro[9] e no Tribunal Regional Federal da 1ª Região.[10]

 

Conclusão

Como não é novidade para quem atua nas áreas de Direito Tributário e Aduaneiro, depois da comemoração inicial com uma decisão favorável, vem a insegurança quanto aos seus reais efeitos. A despeito da clareza e correição da tese firmada pelo STJ no Tema 1293 dos Recursos Repetitivos, a segurança jurídica somente virá com o afastamento da modulação temporal dos seus efeitos e de qualquer tentativa de restringir o conceito de infrações de natureza administrativo-aduaneira, bem como com o necessário distinguishing na aplicação da Súmula CARF nº 11.


[1] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Tema Repetitivo 1293. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_inicial=1293&cod_tema_final=1293. Acesso em: 10 abr. 2025.

[2] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 2.147.578-SP. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?num_registro=202400058975. Acesso em: 09 abr. 2025.

[3] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 2.147.583-SP. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&termo=202400109811. Acesso em: 09 abr. 2025.

[4] Nesse sentido prevê o artigo 487, II, do CPC, ao indicar que haverá resolução de mérito quando o juiz decidir, de ofício ou a requerimento, sobre a ocorrência de decadência ou prescrição.

[5] Confira-se os recentes Acórdãos 3002-003.085 e 3001-003.045 da 3ª Seção de Julgamento do CARF.

[6] São estes os acórdãos paradigmas da Súmula CARF nº 11: Acórdão  nº 103-21113, de 05/12/2002 (IRPJ); Acórdão  nº 104-19410, de 12/06/2003 (IRPF); Acórdão nº  104-19980, de 13/05/2004 (IRPF); Acórdão nº 105-15025, de 13/04/2005 (IRPJ); Acórdão  nº 107-07733, de 11/08/2004 (IRPJ); Acórdão nº 202-07929, de 22/08/1995 (Imposto Único sobre  Minerais); Acórdão nº 203-02815, de 23/10/1996 (IPI); Acórdão nº 203-04404, de 11/10/1997 (FINSOCIAL); Acórdão nº 201-73615, de 24/02/2000 (ITR); Acórdão nº 201-76985, de 11/06/2003 (IPI). BRASIL. Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, Súmulas. Disponível em http://carf.fazenda.gov.br/sincon/public/pages/Sumulas/listarSumulas.jsf Acesso em: 31 de Mar. 2025.

[7] Ao adotar o distinguishing para afastar a Súmula CARF nº 11 e reconhecer a prescrição intercorrente em um caso envolvendo multa aduaneira regulamentar por prestação de informação fora do prazo (Processo 11128.007248/2009-28), a Conselheira Mariel Orsi Gameiro citou exemplos da utilização prévia do instituto pelos conselheiros para afastar a aplicação de súmulas do CARF. BRASIL. Conselho Administrativo de Recursos Fiscais. Acórdão 3402-012.153. Disponível em: https://acordaos.economia.gov.br/acordaos2/pdfs/processados/11128007248200928_7200706.pdf. Acesso em: 09 abr. 2025.

[8]     ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica: Entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 167.

[9] Nesse sentido, Ação Declaratória nº 0152224-51.2019.8.19.0001.

[10] Nesse sentido, Recurso de Apelação nº 1004497-68.2020.4.01.3300.

I Jen Huang

Mestre em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Graduada em Direito pela Universidade Federal Fluminense. Advogada especializada em Direito Aduaneiro e Tributário.

*Este artigo reflete as opiniões do (a) autor (a), e não do Instituto de Pesquisas em Direito Aduaneiro – IPDA.
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