Princípio da Neutralidade e o arrendamento mercantil: assimetrias entre operações domésticas e internacionais na LC 214/25

Diogo Martins Teixeira e Guilherme Alves de Lima*

Com base neste princípio, a tributação deverá observar a neutralidade, de modo que não interfira indevidamente nas escolhas econômicas dos contribuintes, evitando que decisões de negócios sejam determinadas por critérios tributários em detrimento de fundamentos produtivos, comerciais ou tecnológicos, por exemplo.

A experiência do direito comparado pode ser muito útil ao Brasil na aplicação deste princípio. Na União Europeia, o Imposto sobre o Valor Agregado é construído sobre a esta mesma premissa da neutralidade, princípio expresso em diretivas comunitárias conforme 6ª Diretiva do Conselho Europeu, consolidada pela Diretiva 2006/112/CE.

O princípio, contudo, tornou-se um dos eixos mais férteis para o contencioso tributário perante o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE). A experiência europeia mostra que a neutralidade é frequentemente tensionada.

O Tribunal de Justiça da União Europeia tem reiteradamente afirmado que a neutralidade se manifesta principalmente em dois planos: (i) como proibição de discriminação entre operadores que prestem bens ou serviços equivalentes, e (ii) como garantia de integralidade do direito ao crédito.

Questões relativas à definição do direito a crédito, à compatibilidade de regimes diferenciados e à interpretação de exceções são frequentemente resolvidas à luz da neutralidade, revelando que o princípio, ainda que fundamental para implementação de uma tributação justa entre os agentes econômicos, abre espaço para interpretações divergentes e disputas complexas.

O paralelo europeu é ilustrativo para o Brasil.

Se por um lado a consagração da neutralidade no sistema tributário nacional é um marco de modernização, por outro ela poderá servir de base para a multiplicação de discussões administrativas e judiciais, sobretudo em situações em que a legislação complementar crie distinções de tratamento não previstas na Constituição Federal.

Entre os temas em que o princípio da neutralidade deverá assumir papel central destacam-se:

  1. O alcance da não cumulatividade plena – a Constituição estabelece que todo tributo pago na etapa anterior será creditável (salvo exceções expressas), devendo eventuais vedações indevidas ao crédito serem escrutinadas sob a perspectiva da neutralidade, o que deverá gerar considerável margem para controvérsia.
  • Os regimes diferenciados e específicos – a criação de regimes com alíquotas reduzidas e setoriais (ex.: combustíveis, serviços financeiros, bens imóveis, operações com bens de capital) pode gerar assimetrias que impactam a neutralidade. É possível imaginar que uma vez totalmente implementada a reforma tributária, certas estruturas sejam criadas para fazer uso de tais regimes de forma que pode haver ofensa a neutralidade.
  • A diferença de tratamento das operações domésticas e internacionais – a distinção entre operações domésticas e internacionais, embora necessária em alguns casos, pode ser aplicada de modo a favorecer ou desfavorecer artificialmente determinados modelos de negócio. Este será o enfoque principal deste artigo.

Nesse cenário, um alerta é essencial: a consagração do princípio da neutralidade deve ser compreendida como um forte vetor interpretativo, e não como uma “cláusula-guindaste” capaz de invalidar, por si só, qualquer regime setorial, diferença de tratamento ou política pública instituída pelo legislador. Ou seja, o princípio da neutralidade não pode ser utilizado como argumento absoluto para desconstituir escolhas legítimas do legislador.

Em síntese, sua força reside, e se limita, na capacidade de condicionar a interpretação e a aplicação das normas tributárias à lógica da não influência sobre escolhas agentes que deverão seguir o racional de eficiência econômica, mas sempre dentro do espaço normativo definido pelo texto constitucional e pelas escolhas legislativas expressamente autorizadas.

Feitos estes esclarecimentos necessários, passa-se ao caso concreto que inspirou o presente artigo, a diferença de tratamento tributário entre o arrendamento mercantil doméstico e internacional introduzida pela Lei Complementar nº 214/2025.

Arrendamento Mercantil – Tratamento tributário estabelecido na LC 214/25

O arrendamento mercantil, também conhecido como leasing, é uma operação contratual pela qual uma pessoa jurídica (arrendadora) cede a outra (arrendatária) o uso de determinado bem, móvel ou imóvel, mediante pagamento periódico e com a possibilidade de aquisição do bem ao final do contrato, mediante valor residual. O arrendamento mercantil é regulamentado no Brasil essencialmente pela Lei nº 6.099/1974 e pelas normas do Conselho Monetário Nacional.

Em linhas muito gerais e sem esgotar as suas características, o arrendamento mercantil se desdobra em duas modalidades principais: (i) financeiro, quando há a intenção de compra ao término do contrato, e (ii) operacional, quando a arrendatária apenas utiliza o bem durante o prazo pactuado, normalmente devolvendo-o ao final – embora exista opção de compra.

Trata-se de instrumento amplamente utilizado em setores de capital intensivo — como aviação, transporte, energia e indústria — por permitir o acesso a bens de alto valor sem necessidade de aquisição imediata, combinando elementos de financiamento e locação, o que, por sua natureza híbrida, gera desafios para o respectivo enquadramento tributário.

O arrendamento mercantil, em ambas as modalidades, é qualificado como serviço financeiro, sendo aplicáveis as regras deste regime específico, especialmente aquelas previstas nos artigos 201 a 203 da LC 214/25.

No arrendamento mercantil operacional, (i) as parcelas das contraprestações serão tributadas como locação do bem (podendo variar o regime de acordo com a natureza do bem, se móvel ou imóvel) e (ii) a alienação do bem objeto do contrato será tributada pela alíquota aplicável à venda (havendo variação se bem móvel ou imóvel – regime específico).

No arrendamento mercantil financeiro, (i) as parcelas das contraprestações serão tributadas como serviço financeiro pela alíquota única nacional (conforme artigo 189 da LC 214/25) e (ii) o valor residual do bem arrendado (valor residual garantido – VRG) será tributado pela alíquota aplicável à venda (havendo variação se bem móvel ou imóvel – regime específico).

O tratamento tributário descrito acima se aplica aos arrendamentos mercantis domésticos e, teoricamente, na importação desse serviço financeiro. É justamente neste ponto – operações internacionais – que começam as diferenças.

Diferenças de tratamento tributário entre operações domésticas e internacionais – Violação ao princípio da Neutralidade?

Como regra geral, os serviços financeiros importados ficam sujeitos à incidência do IBS e da CBS pela mesma alíquota aplicável aos respectivos serviços financeiros adquiridos de fornecedores domiciliados no País, conforme disposto no artigo 231 da LC 214/25.

Tal previsão legal constitui materialização clara e intencional do princípio da neutralidade.

No entanto, esta regra vem acompanhada de previsão específica que atribui tratamento distinto entre as operações domésticas e internacionais (de importação de serviço financeiro).

A legislação prevê a possibilidade de, nas hipóteses em que o importador dos serviços financeiros seja contribuinte do IBS e da CBS sujeito ao regime regular e que tenha direito de apropriação de créditos desses tributos na aquisição do mesmo serviço financeiro no País, será aplicada alíquota zero na importação, e não serão apropriados créditos do IBS e da CBS (artigo 231, §1º, inciso II da LC 214/25).

À primeira vista, a previsão parece buscar simplificação da operação tornando a etapa do arrendamento como uma etapa transparente para fins de CBS e IBS.

No entanto, a análise não pode se limitar a este ponto. O tratamento previsto, sem dúvida, já pode promover o direcionamento para a escolha de estruturas de arrendamento mercantil internacional em função do possível impacto de fluxo de caixa que pode ser evitado pela estrutura, especialmente se o contribuinte apurar ou tiver tendência de apurar – saldos credores de CBS e IBS em razão das suas atividades econômicas.

É este o principal ponto de atenção que inspirou a elaboração deste artigo. Estaria tal previsão violando o princípio da neutralidade ao induzir comportamento fora das hipóteses constitucionalmente previstas?

Para que haja simetria de tratamento tributário, e se a intenção do legislador complementar foi tornar a etapa do arrendamento mercantil transparente para fins tributários, em princípio o mesmo regime – inclusive alíquota – deveria ter sido estabelecido aos fornecimentos domésticos.

Importante notar que, para o setor de aviação, o legislador complementar estabeleceu a possibilidade de dispensa do pagamento do IBS e da CBS na importação temporária de aeronaves por contribuinte do regime regular, conforme artigo 89, §4º da LC 214/25.

Caso tal dispensa não existisse, a importação temporária das aeronaves seria mais onerada do que o fornecimento doméstico igualmente temporário, dado que este último, em princípio, seria sujeito apenas ao IBS e CBS relacionados ao arrendamento mercantil (e não sobre a ‘entrega / disponibilização’ física do bem).

Assim, a regra do artigo 89, §4º, ao contrário da regra prevista no artigo 231, §1º, inciso II da LC 214/25, observa e materializa o princípio da neutralidade tributária.

Considerações finais

A consagração do princípio da neutralidade pela Emenda Constitucional nº 132/2023 e pela Lei Complementar nº 214/2025 representa um marco na evolução do sistema tributário brasileiro. A elevação do princípio a vetor interpretativo obrigatório é sinal de modernização e de alinhamento às melhores práticas internacionais, especialmente às experiências europeias com o IVA.

No entanto, como se procurou demonstrar, a neutralidade não se esgota na sua previsão constitucional. O exame de situações concretas, como o arrendamento mercantil, revela que a neutralidade pode ser comprometida por opções legislativas que criam distorções econômicas ou promovida por previsões que justamente eliminem eventuais assimetrias.

Evidentemente, há outras situações em que a neutralidade poderá ser tensionada, mas o objetivo neste texto foi destacar, de forma pontual, como um exemplo concreto (o arrendamento mercantil) é capaz de evidenciar a efetiva aplicação – ou não – da neutralidade.

A análise do caso do arrendamento mercantil revela que o princípio da neutralidade, embora constitucionalizado no novo modelo tributário, enfrentará desafios de coerência normativa.

A LC 214/25 estabelece, de um lado, um regime de alíquota zero para o arrendamento mercantil internacional, e, de outro, mantém a tributação dos arrendamentos mercantis domésticos (ainda que com direito a crédito), criando um incentivo econômico (diretamente relacionado ao fluxo de caixa das empresas) que, em princípio, desafia e contraria a neutralidade pretendida. Trata-se de exemplo de como escolhas legislativas pontuais podem reintroduzir distorções que a Reforma Tributária buscou justamente eliminar.

Em contraste, o exemplo trazido do setor de aviação demonstra que a neutralidade pode ser concretizada de forma técnica e equilibrada. O artigo 89, §4º, da LC 214/25, ao dispensar o pagamento de IBS e CBS na importação temporária de aeronaves, corrige uma potencial desvantagem fiscal e assegura igualdade material entre as alternativas contratuais de arrendamento mercantil doméstico ou internacional.

A solução adotada parece ser coerente com a Constituição, mostrando que a neutralidade não é incompatível com políticas setoriais e tratamentos diferenciados para situações específicas – desde que estas preservem paridade entre os agentes e não privilegiem artificialmente determinados modelos de negócio.

Assim, o arrendamento mercantil serve como microcosmo dos desafios e das oportunidades que a implementação da Reforma Tributária apresentará.

A distinção entre o artigo 89, §4º, e o artigo 231, §1º, II, ambos da LC 214/25, revela que a neutralidade pode ser tanto violada quanto efetivada em situações bastante próximas. A consolidação de um sistema tributário neutro exigirá, portanto, a replicação das boas práticas legislativas e o constante controle das assimetrias.

A experiência comparada indica que a adoção da neutralidade como vetor não será livre de litígios. Na União Europeia, o princípio da neutralidade é constantemente invocado perante o Tribunal de Justiça da União Europeia, servindo como parâmetro de validade de normas.

Não é improvável que o mesmo ocorra no Brasil: ao mesmo tempo em que o princípio funciona como conquista normativa, ele também abre espaço para intenso contencioso, sobretudo diante da complexidade de nossa reforma estrutural (teremos inclusive um IVA dual) e da tendência de interpretações restritivas por parte da administração tributária.

Nesse sentido, o desafio será transformar a neutralidade em princípio efetivo e vinculante, capaz de orientar não apenas a legislação complementar, mas também a atuação do Fisco e a interpretação judicial. Se a neutralidade se tornar um enunciado retórico e relativizado, seus efeitos não serão sentidos.

Portanto, em nossa visão, mais do que uma cláusula de estilo, a neutralidade deve ser compreendida como um limite material à tributação.

O sucesso da Reforma Tributária dependerá, em grande medida, da capacidade de preservar esse princípio contra fragmentações setoriais e de consolidá-lo como garantia de segurança jurídica, eficiência econômica e simplificação tributária.


* Diogo Martins Teixeira é Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-Graduado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).

*Guilherme Alves de Lima é advogado. Mestrando em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela UERJ. MBA em Gestão Tributária pela USP/Esalq. Pós-Graduado em Direito Público e Privado pela EMERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ.


*Este artigo reflete as opiniões do (a) autor (a), e não do Instituto de Pesquisas em Direito Aduaneiro – IPDA.
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