Quem acompanha as discussões aduaneiras de perto sabe que o tema que mais movimentou os tribunais, grupos de discussão e redes sociais no último mês foi o julgamento do Tema Repetitivo nº 1.293 pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). A Primeira Seção do STJ estabeleceu um importante marco para o Direito Aduaneiro ao reconhecer a aplicabilidade da prescrição intercorrente às multas de natureza aduaneira.
Essa decisão trouxe impactos significativos para as relações entre os contribuintes e a Administração Pública, bem como para a interpretação sistemática das normas que regem o processo administrativo federal. Contudo, alguns de seus desdobramentos merecem um olhar mais atento.
Round 1: o julgamento do Tema Repetitivo nº 1.293
Nos Recursos Especiais nº 2147583/SP e 2147578/SP, representativos da controvérsia, a questão jurídica central consiste em definir se incide a prescrição intercorrente prevista no artigo 1º, §1º, da Lei 9.873/1999 quando o processo administrativo de apuração de infrações aduaneiras fica paralisado por mais de 3 (três) anos.
Os contribuintes buscavam o reconhecimento da prescrição intercorrente em processos administrativos instaurados para apurar infrações relacionadas à ausência de prestação de informações sobre veículo ou carga transportada (infração prevista no artigo 107, IV, “e”, do DL 37/66), os quais permaneceram sem movimentação por período superior a três anos.
A Primeira Seção do STJ deu provimento aos recursos especiais dos contribuintes, reconhecendo a aplicabilidade da prescrição intercorrente para penalidades administrativas de natureza aduaneira. O voto condutor do Ministro Paulo Sérgio Domingues, acompanhado à unanimidade pelos demais integrantes da Primeira Seção, estruturou-se em quatro pilares fundamentais:
(a) Distinção entre procedimento e natureza jurídica: o relator entendeu que o procedimento utilizado para constituição do crédito não altera a natureza jurídica da norma violada. Em suas palavras, “o procedimento, seja ele qual for, não tem aptidão para alterar a natureza das coisas, de modo que as infrações de normas de natureza administrativa não se convertem em infrações tributárias apenas pelo fato de o legislador ter estabelecido, por opção política, que aquelas serão apuradas segundo processo ou procedimento ordinariamente aplicado para estas“.
Este entendimento superou a argumentação fazendária segundo a qual o simples fato de a apuração da infração aduaneira seguir o procedimento previsto no Decreto 70.235/72 (que regulamenta o processo administrativo fiscal) seria suficiente para excluir a aplicação da prescrição intercorrente prevista na Lei 9.873/99.
(b) Critério para definição da natureza jurídica: segundo o acórdão, é a natureza jurídica da norma de conduta violada que define se determinada infração à lei deve ou não obediência aos ditames da Lei 9.873/99, e não o procedimento escolhido para sua apuração.
(c) Finalidade da norma como elemento determinante: para fins de identificação da natureza jurídica das infrações aduaneiras, o relator adotou como critério a finalidade da norma violada, estabelecendo que (c.1) se a norma visa primordialmente ao controle do trânsito internacional de mercadorias ou à regularidade do serviço aduaneiro, a infração tem natureza administrativa; e (c.2) somente tem natureza tributária a infração que se destina direta e imediatamente à arrecadação ou à fiscalização dos tributos incidentes sobre o negócio jurídico.
(d) Compatibilidade entre suspensão da exigibilidade e prescrição intercorrente: a decisão refutou o argumento trazido pela Fazenda Nacional no sentido de que haveria incompatibilidade entre a suspensão da exigibilidade do crédito e a incidência da prescrição intercorrente. A suspensão da exigibilidade impede a fluência do prazo da prescrição executória (nos termos do artigo 174 do CTN), ao passo que a prescrição intercorrente disciplina o tempo máximo para conclusão do processo administrativo, salvaguardando o administrado contra a demora excessiva.
Fundamentado nessas premissas, o STJ fixou as seguintes teses vinculantes:
- “Incide a prescrição intercorrente prevista no art. 1º, § 1º, da Lei 9.873/1999 quando paralisado o processo administrativo de apuração de infrações aduaneiras, de natureza não tributária, por mais de 3 anos.“
- “A natureza jurídica do crédito correspondente à sanção pela infração à legislação aduaneira é de direito administrativo (não tributário) se a norma infringida visa primordialmente ao controle do trânsito internacional de mercadorias ou à regularidade do serviço aduaneiro, ainda que, reflexamente, possa colaborar para a fiscalização do recolhimento dos tributos incidentes sobre a operação.“
- “Não incidirá o art. 1º, § 1º, da Lei 9.873/99 apenas se a obrigação descumprida, conquanto inserida em ambiente aduaneiro, destinava-se direta e imediatamente à arrecadação ou à fiscalização dos tributos incidentes sobre o negócio jurídico realizado.“
Embora a posição do STJ não seja exatamente uma novidade – já que as duas Turmas do Tribunal já vinham decidindo nessa mesma linha –, o fato de a decisão agora ter efeito vinculante para todos os tribunais do país causou um verdadeiro impacto no mundo jurídico. Não é para menos: estamos falando de milhares de processos administrativos que podem ser atingidos pela prescrição intercorrente.
Encerrado o round 1 a favor dos contribuintes, não demorou para surgirem movimentos por parte da Administração Pública tentando mitigar os efeitos da decisão proferida pelo STJ. O desdobramento mais importante foi a oposição de Embargos de por parte da Fazenda Nacional, apontando uma suposta omissão quanto ao marco inicial do prazo de prescrição intercorrente.
Round 2: os Embargos de Declaração da PGFN
Conforme mencionado, após a publicação do acórdão, a Fazenda Nacional opôs Embargos de Declaração, alegando não pretendia questionar a aplicabilidade da prescrição intercorrente às multas aduaneiras de natureza administrativa, mas tão somente sanar uma suposta omissão quanto ao marco inicial para a contagem do prazo prescricional.
O cerne da argumentação fazendária reside na tese de que o prazo de 3 (três) anos previsto no artigo 1º, § 1º, da Lei 9.873/99 só começaria a fluir após o término do prazo de 360 (trezentos e sessenta) dias concedido à Administração Pública, pelo artigo 24 da Lei 11.457/2007[1], para decidir sobre petições, defesas ou recursos administrativos.
A Fazenda Nacional fundamenta sua posição em um trecho do voto-vogal do Ministro Afrânio Vilela, que, segundo seu entendimento, teria expressamente considerado que o prazo prescricional só se inicia após o término daquele prazo de 360 (trezentos e sessenta) dias.
No entanto, a argumentação desenvolvida pela Fazenda Nacional nos Embargos de Declaração apresenta algumas inconsistências técnicas e conceituais que merecem uma análise mais aprofundada.
Primeiramente, é fundamental compreender que o artigo 24 da Lei 11.457/07 e o artigo 1º, § 1º, da Lei 9.873/99 disciplinam situações jurídicas distintas e inconfundíveis. O artigo 24 da Lei 11.457/07 estabelece um prazo máximo para a Administração Pública Federal decidir sobre petições, defesas ou recursos administrativos do contribuinte, como desdobramento dos princípios do direito de propriedade, da razoável duração do processo, do devido processo legal e da eficiência, previstos no artigo 5º, incisos XXII, LIV e LXXVIII, combinados como artigo 37, ambos da Constituição Federal, e no artigo 2º da Lei nº 9.784/99.
As disposições da Lei nº 11.457/07 foram inseridas no ordenamento jurídico como resposta ao problema da morosidade e da falta de iniciativa da Administração Fazendária no atendimento dos pleitos dos contribuintes.
Por outro lado, a Lei 9.873/99 disciplina o prazo prescricional para o exercício da ação punitiva pela Administração Pública Federal e, no seu artigo 1º, §1º, estabelece que incide a prescrição intercorrente quando o processo administrativo de apuração de infrações de natureza não tributária ficar paralisado por mais de 3 (três) anos sem que haja julgamento, despacho ou a prática de atos de impulsionamento.
São, portanto, institutos jurídicos que, embora coexistam harmonicamente no ordenamento, não se confundem quanto às suas finalidades e efeitos jurídicos.
O artigo 24 da Lei nº 11.457/07 trata do prazo da Administração Pública para a apreciação de um pedido ou direto do contribuinte, ao passo que o artigo 1º, § 1º, da Lei 9.873/99 trata do prazo prescricional para o exercício de um direito por parte da Administração Pública. Ambos os artigos e prazos devem ser observados pela Administração Pública, cada um dentro da sua esfera de aplicação.
Contrariamente ao sustentado pela Fazenda Nacional, uma leitura atenta do voto-vogal do Ministro Afrânio Vilela revela que ele não estabeleceu uma relação de precedência temporal entre os prazos, mas sim a necessidade de observância concomitante de ambos os dispositivos legais. Vale destacar o trecho em que Ministro trata especificamente da concomitância dos prazos:
“Assim – considerando que o simples recebimento do recurso administrativo no efeito suspensivo não se enquadra em nenhuma das causas de interrupção ou suspensão da prescrição previstas nos arts. 2º e 3º da Lei 9.873/1999 –, em se tratando de processo administrativo fiscal instaurado para constituição e exigência de crédito correspondente a multa de natureza não tributária, a autoridade julgadora deve observar, além do art. 24 da Lei 11.457/2007, também o § 1º do art. 1º daquela Lei 9.873/1999, que dispõe que ‘incide a prescrição no procedimento administrativo paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho, cujos autos serão arquivados de ofício ou mediante requerimento da parte interessada, sem prejuízo da apuração da responsabilidade funcional decorrente da paralisação, se for o caso’.”
A expressão “além de” indica a necessidade de observância cumulativa de ambos os dispositivos, e não sua aplicação sequencial. Ademais, o Ministro acompanhou integralmente o voto do relator, tanto na fixação da tese quanto na solução do caso concreto, reconhecendo a ocorrência da prescrição intercorrente nos casos analisados.
Diante disso, nos parece que a melhor interpretação do referido trecho do voto do Ministro Afrânio Vilela seria no sentido de que (i) a Administração Pública tem o dever de apreciar qualquer petição ou pedido que lhe seja submetido, inclusive de natureza não tributária, no prazo de 360 (trezentos e sessenta) dias; e (ii) caso a Administração Pública não movimente processo administrativo de apuração de infrações de natureza não tributária por mais de 3 (três) anos, fica caracterizada a prescrição intercorrente.
Assim, o que se verifica é que, após ter perdido a discussão de mérito, a Fazenda Nacional busca defender, por meio de Embargos de Declaração, que o prazo para caracterização da prescrição intercorrente seria de aproximadamente 4 (quatro) anos, em uma nítida tentativa de reduzir o impacto financeiro da decisão do STJ para os cofres da União Federal.
Contudo, a tentativa de estender o prazo prescricional mediante a soma do prazo do artigo 24 da Lei 11.457/07 com o prazo do artigo 1º, § 1º, da Lei 9.873/99, criando um terceiro prazo que não está legalmente previsto contraria o princípio da legalidade. A jurisprudência consolidada do STJ e do STF já firmou entendimento de que as normas que estabelecem prazos prescricionais devem ser interpretadas restritivamente, não se admitindo ampliações por construções interpretativas.
Além disso, é importante lembrar que, nos termos do artigo 111, inciso I, do CTN, deve-se interpretar literalmente a legislação tributária que disponha sobre suspensão ou exclusão do crédito tributário e outorga de isenção.
Conclusão
O julgamento do Tema 1293 pelo STJ representa um importante avanço na delimitação da natureza jurídica das infrações aduaneiras e na aplicação da prescrição intercorrente nesse contexto.
Os Embargos de Declaração opostos pela Fazenda Nacional, sob o pretexto de esclarecer o marco inicial do prazo prescricional, revelam uma estratégia processual destinada a mitigar os efeitos da decisão e ampliar indevidamente o prazo para configuração da prescrição intercorrente.
A tentativa de “ganhar no segundo round” aquilo que se perdeu no mérito não deve prosperar, sob pena de se comprometer a segurança jurídica e a própria racionalidade do sistema normativo. A distinção entre o prazo para configuração da mora administrativa (previsto no artigo 24 da Lei 11.457/07) e o prazo para a prescrição intercorrente (previsto no artigo 1º, §1º da Lei 9.873/99) é clara e não comporta a interpretação pretendida pela Fazenda Nacional.
A comunidade jurídico-aduaneira aguarda com interesse o julgamento dos Embargos de Declaração, na expectativa de que seja mantida a integridade da decisão original, preservando-se a coerência do ordenamento jurídico e o equilíbrio nas relações entre Fisco e contribuintes.
Foi dado início ao round 2. Agora é aguardar o julgamento dos Embargos de Declaração para ver quem leva a melhor nessa disputa.
[1] Art. 24. É obrigatório que seja proferida decisão administrativa no prazo máximo de 360 (trezentos e sessenta) dias a contar do protocolo de petições, defesas ou recursos administrativos do contribuinte.
Autor
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Advogada. Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-Graduada em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP) e em Direito Tributário Internacional pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT/SP).
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