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Subvaloração e subfaturamento: diferenças teóricas com relevantes consequências práticas

A valoração aduaneira é um dos temas do Direito Aduaneiro que vem ganhando relevância nos últimos anos. Seja pelo potencial de arrecadação, complexidade das discussões e interação com outras legislações (como aquela relativa a preços de transferência), a valoração aduaneira tornou-se um tema chave quando o assunto é compliance aduaneiro e gestão de risco nas operações de comércio exterior.

Sem pretensão de esgotar o tema (que, por sinal, possui diversas variantes interessantíssimas e que oportunamente serão objeto da presente coluna), o artigo pretende fixar as premissas básicas que devem ser observadas sempre que o valor aduaneiro for objeto de controvérsia.

  1. O que é o valor aduaneiro?

O valor aduaneiro corresponde à base de cálculo do Imposto de Importação, quando a alíquota for ad valorem, apurado de acordo com o Acordo sobre a implementação do Artigo VII do General Agreement on Tariffs and Trade (“GATT”), também conhecido como Acordo de Valoração Aduaneira (“AVA”). O AVA foi internalizado no ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto Legislativo nº 30/1994 e promulgado pelo Decreto nº 1.355/1994. No âmbito infralegal, o Regulamento Aduaneiro[1] e a Instrução Normativa nº 2.090/22 regulamentam o procedimento de fiscalização relativo ao valor aduaneiro das mercadorias importadas.

No Brasil, o valor aduaneiro também é a base de cálculo do PIS/COFINS-Importação, integrando também a base de cálculo do IPI e do ICMS. Assim, todo e qualquer questionamento relativo ao valor aduaneiro impacta, direta ou indiretamente, os demais tributos devidos na importação de mercadorias (e assim permanecerá após a reforma tributária, com o IBS e a CBS).

O objetivo do AVA é garantir que os países signatários possuam regras uniformes e equitativas para determinação do valor aduaneiro, que não deve ser artificialmente reduzido e tampouco refletir valores arbitrários ou fictícios. Nesse sentido, o AVA determina que, sempre que possível, o valor aduaneiro deve corresponder ao valor da transação, isto é, ao preço efetivamente pago ou a pagar pelas mercadorias em uma venda para exportação para o país de importação, ajustado de acordo com as disposições do art. 8 do AVA. Trata-se do princípio da primazia do valor da transação, insculpido na Introdução Geral, no preâmbulo e no art. 1º do AVA.

Porém, tal princípio não é absoluto, uma vez que há hipóteses em que o valor da transação não pode ser adotado, nos termos do artigo 1.1 do AVA. Exemplo disso é o caso em que a importação não tenha por objeto uma compra e venda internacional de mercadorias (e.g., importações que tenham origem num contrato de aluguel, como aquelas ocorridas sob o regime de admissão temporária). Outra situação que impede a utilização do valor da transação ocorre nos casos em que, em razão da vinculação entre importador e exportador, o preço tenha sido influenciado (o que normalmente implica a adoção de preço inferior àquele que seria normalmente adotado se importador e exportador não fossem vinculados).

Como será analisado, infrações relativas à aplicação do AVA devem ser apuradas seguindo o rito específico deste acordo. A exceção ocorre nos casos em que comprovada a ocorrência de fraude, simulação ou conluio quanto ao valor aduaneiro praticado.

  • Infrações relativas à valoração aduaneira – Subvaloração e Subfaturamento

As infrações relativas à apuração do valor aduaneiro são comumente conhecidas na doutrina e na jurisprudência por subvaloração e subfaturamento.

A subvaloração ocorre quando há divergência e/ou descumprimento em relação à aplicação do AVA. Os casos acima mencionados envolvendo impossibilidade de utilização do valor da transação são exemplos de subvaloração (quando devidamente justificados).

Já o subfaturamento é verificado quando o importador intencionalmente manipula o valor aduaneiro, por meio de falsidade material ou ideológica da fatura comercial. Tratando-se de infração de natureza subjetiva, o subfaturamento apenas estará configurado quando comprovada, por parte da autoridade aduaneira, a ocorrência de falsidade da fatura comercial e o artifício doloso empregado pelo importador para redução artificial do preço. Meros indícios ou dúvidas em relação ao preço praticado não são suficientes para tipificar o subfaturamento.

A falsidade material ou ideológica da fatura comercial pode ser apurada por diversos meios, tal como perícia do documento e prova de que o preço efetivamente praticado na importação não refletiu aquele constante nos documentos de importação (e.g., planilhas e remessas paralelas de divisas ao exterior). Em nenhum caso, porém, o subfaturamento será comprovado mediante a simples comparação entre os preços praticados pelo importador com preços praticados por terceiros. Como já tivemos oportunidade de analisar[2], tal comparação sequer é suficiente para qualificar a subvaloração, nos termos da Opinião Consultiva nº 2.1 do Comitê Técnico de Valoração Aduaneira[3].

Assim, enquanto o subfaturamento pressupõe a ocorrência de dolo por parte do importador, a subvaloração é verificada quando há divergência de interpretação ou até mesmo erro na aplicação do AVA, sem ocorrência de manipulação de informações e documentos.

Tal diferença teórica de conceitos é extremamente relevante, considerando que a subvaloração e o subfaturamento ensejam procedimentos de fiscalização e de recálculo do valor aduaneiro distintos, assim como sanções diversas aplicáveis ao importador.

  • Subvaloração – fiscalização e procedimento

No caso de subvaloração, eventual questionamento em relação ao valor aduaneiro praticado deve seguir o rito formal previsto no AVA, sob pena de nulidade do auto de infração.

No caso em que houver dúvidas acerca da acerca da aceitabilidade do preço em razão da vinculação entre importador e exportador, é importante que se esclareça que a simples vinculação entre as partes não autoriza a desconsideração do valor de transação de forma imediata. Pelo contrário: o caminho a ser percorrido é longo e demanda que a autoridade (i) investigue as circunstâncias da venda; (ii) demonstre a ilegitimidade do valor da transação; (iii) informe o importador as respectivas razões para desconsideração do preço praticado e (iv) oportunize ao importador direito de defesa, antes mesmo da desconsideração do valor da transação, nos termos do artigo 1.2 (a) do AVA e do Comentário 15.1 do Comitê Técnico de Valoração Aduaneira.

Além disso, o valor da transação deverá ser aceito sempre que o importador demonstre que o valor aduaneiro por ele praticado se aproxima muito do valor que seria apurado segundo um dos valores-critério previstos no artigo 1.2 (b) do AVA.

Caso a autoridade aduaneira não aceite as razões do importador (o que deve ser devidamente justificado com dados objetivos, e não meras conjecturas) e não seja possível comprovar que o valor da transação se aproxima muito de um dos valores-critério, o valor da transação será afastado e o valor aduaneiro será apurado segundo um dos métodos substitutivos previstos no AVA, quais sejam: Método do Valor da Transação de Mercadoria Idênticas (2º método); Método do Valor da Transação de Mercadoria Similares (3º método); Método do Valor Dedutivo (4º método); Método do Valor Computado (5º método) e Método pelo Critério da Razoabilidade (6º método).

A aplicação dos métodos substitutivos demanda a observância das regras previstas no AVA. A apuração deve seguir fielmente a ordem sequencial dos métodos, sendo que apenas é permitido aplicar o método seguinte quando devidamente justificada a impossibilidade de aplicação do método anterior. As Notas Interpretativas do AVA são expressas no sentido de que “somente quando o valor aduaneiro não puder ser determinado conforme as disposições de um dado Artigo é que o disposto no Artigo subsequente pode ser utilizado”[4].

A inobservância da ordem sequencial dos métodos é frequentemente causa de cancelamento de autos de infração relativos à subvaloração. Por exemplo, é muito comum a desconsideração dos métodos 2º a 5º de forma quase que automática pelas autoridades, para que seja aplicado desde logo o 6º método, que autoriza a apuração do valor aduaneiro com certa flexibilidade por parte da autoridade aduaneira. Nesse caso, o auto de infração é nulo visto que a aplicação do 6º método demanda a inequívoca comprovação de que os métodos anteriores não puderam ser aplicados. Da mesma forma, o afastamento do 2º ou 3º método com base na alegação de que a autoridade aduaneira não possui dados das importações de mercadorias idênticas ou similares não é justificativa suficiente para afastar tais métodos, quando a base de dados de todas as operações de importação está a seu livre e exclusivo dispor.

Caso qualquer etapa do rito acima seja descumprida e/ou caso a autoridade aduaneira não demonstre objetivamente as razões que levaram ao afastamento do valor da transação, o auto de infração deve ser cancelado, conforme jurisprudência administrativa[5] e judicial[6] sobre o tema.

Uma vez calculado o valor aduaneiro substitutivo, será exigida a diferença de tributos, acrescida de juros e multa de ofício[7].

Por fim, vale destacar que, como regra, o procedimento de fiscalização relativo à valoração aduaneira deve ser feito sempre após o desembaraço aduaneiro, observado o prazo decadencial de 5 anos. Isso porque a fiscalização é extremamente complexa, não sendo razoável a retenção das mercadorias durante todo o período necessário à apuração do valor aduaneiro. Nesse sentido, a própria RFB reconhece, desde a vigência da Instrução Normativa 327/03 (revogada pela atual Instrução Normativa 2.090/22), que o procedimento de fiscalização de valoração aduaneira deve ocorrer após a liberação da mercadoria[8] (a despeito da prática nos mostrar que nem sempre esse comando é seguido à risca).

Contudo, tal dispositivo foi recentemente modificado pela Instrução Normativa nº 2.338/24, que alterou o artigo 25 da Instrução Normativa para passar a prever que o a verificação da adequação do valor aduaneiro declarado será realizada “preferencialmente após o desembaraço aduaneiro”. Trata-se de alteração que vai na contramão das melhores práticas internacionais que, segundo Solon Sehn, “já perceberam que, tecnicamente, o momento mais apropriado para auditorias dessa natureza é a revisão aduaneira (post-release control).[9]

  • Subfaturamento – fiscalização e procedimento

Como mencionado, o subfaturamento demanda a comprovação inequívoca da falsidade material ou ideológica da fatura comercial para reduzir de forma ardilosa o valor aduaneiro.

Nesse caso, a apuração do valor aduaneiro não é feita segundo os ditames do AVA, mas sim de acordo com o artigo 88 da Medida Provisória nº 2.158-35/01, que prevê o arbitramento do valor aduaneiro nos casos de fraude, simulação e conluio. Os critérios para arbitramento constam nos incisos do artigo 88, que também devem ser aplicados de forma sequencial, como expressamente previsto no caput[10].

Vale o destaque de que o arbitramento aplica-se nos casos em que “não seja possível a apuração do preço efetivamente praticado na importação”. Assim, se for possível determinar o valor aduaneiro efetivamente praticado na importação (o que normalmente ocorre no caso de falsidade ideológica), tal valor deverá ser considerado para fins de valoração aduaneira[11]

No que se refere às sanções, por muito tempo discutiu-se se o subfaturamento ensejaria a aplicação da pena de perdimento da mercadoria (ou da multa substitutiva equivalente ao valor aduaneiro da mercadoria, caso estas já tenham sido vendidas ou consumidas) ou a aplicação da multa de 100% da diferença entre o preço declarado e o efetivamente praticado ou arbitrado, prevista no parágrafo único do artigo 88 da Medida Provisória nº 2.158-35/01.

Atualmente, prevalece o comando do artigo 703-A do Regulamento Aduaneiro, que determina que, na hipótese de subfaturamento, quando a conduta estiver sujeita tanto à multa de 100% da diferença quanto à pena de perdimento da mercadoria, somente será aplicável a pena de perdimento.

Assim, nos casos de subfaturamento praticado mediante falsidade material da fatura comercial, o importador estará sujeito à aplicação da pena de perdimento (ou da multa substitutiva), uma vez que esta pressupõe a ocorrência de adulteração de documento necessário ao desembaraço (i.e., a fatura comercial), infração esta tipificada como dano ao erário, nos termos do artigo 689, inciso VI do Regulamento Aduaneiro.

No caso de falsidade ideológica, aplica-se a multa de 100% da diferença entre o preço praticado e o preço declarado, nos termos do parágrafo único do artigo 88 da Medida Provisória nº 2.158-35/01.

Além disso, a diferença de tributos será exigida, acrescida de juros e multa de ofício (ou qualificada, o que igualmente pode ensejar discussão em relação à dupla penalização do importador).

A divergência entre a forma pela qual o subfaturamento é praticado também tem efeitos em relação à possibilidade de retenção das mercadorias em sede de procedimento de fiscalização de combate às fraudes aduaneiras, regido pela Instrução Normativa nº 1.986/20. Considerando que tal rito aplica-se somente aos casos em que houver “indícios de infração punível com a pena de perdimento”, em tese não há que se falar em retenção das mercadorias importadas quando a suspeita envolver subfaturamento cometido por falsidade ideológica (e, muito menos, casos de subvaloração).

  •  Conclusão

Como acima demonstrado, a distinção entre subvaloração e subfaturamento é essencial para que se assegure o correto procedimento de fiscalização e reapuração do valor aduaneiro.

Diante da crescente importância das discussões relativas à valoração aduaneira, é essencial que as autoridades, advogados e operadores do comércio exterior se familiarizem com esses conceitos, considerando as consequências práticas advindas de uma ou outra situação.


[1] Decreto nº 6.759/09.

[2] STEFANO, Marcelle Silbiger De. Procedimento de fiscalização em matéria de valoração aduaneira. In: PEREIRA, Cláudio Augusto Gonçalves; REIS, Raquel Segalla. Ensaios de Direito Aduaneiro II. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2023.

[3] “Opinião consultiva 2.1 – Aceitabilidade de um preço inferior aos preços correntes de mercado para mercadorias idênticas

1. Foi formulada a questão acerca da aceitabilidade de um preço inferior aos preços correntes de mercadorias idênticas quando da aplicação do Artigo 1 do Acordo sobre a Implementação do Artigo VII do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio.

2. O Comitê Técnico de Valoração Aduaneira examinou esta questão e concluiu que o simples fato de um preço ser inferior aos preços correntes de mercado para mercadorias idênticas não poderia ser motivo para sua rejeição para os fins do Artigo 1, sem prejuízo, no entanto, do estabelecido no Artigo 17 do Acordo.”

[4] Salvo quando verificada a situação do art. 4 do AVA, que autoriza a inversão dos métodos 4º e 5º caso solicitado pelo importador.

[5] Acórdão nº 3302-003.197, Acórdão nº 3401-003.257; Acórdão nº 3301¬004.683; Acórdão 3302-010.803.

[6] TRF3, Apelação nº 0001587-44.2009.4.03.6104.

[7] Em alguns casos, os autos de infração exigem também a multa de 1% do valor aduaneiro por prestação de informação incorreta nos documentos de importação, nos termos do art. 711, inciso III do Regulamento Aduaneiro que, a nosso ver, é altamente questionável.

[8] Art. 25 da IN 2.090/22 e art. 31 da IN 327/03.

[9] Sehn, Solon. Curso de Direito Aduaneiro,  2ª Edição. Forense, 2022, VitalBook file, p. 236.

[10] Art. 88.  No caso de fraude, sonegação ou conluio, em que não seja possível a apuração do preço efetivamente praticado na importação, a base de cálculo dos tributos e demais direitos incidentes será determinada mediante arbitramento do preço da mercadoria, em conformidade com um dos seguintes critérios, observada a ordem seqüencial:

I – preço de exportação para o País, de mercadoria idêntica ou similar;

II – preço no mercado internacional, apurado:

a) em cotação de bolsa de mercadoria ou em publicação especializada;

b) de acordo com o método previsto no Artigo 7 do Acordo para Implementação do Artigo VII do GATT/1994, aprovado pelo Decreto Legislativo no 30, de 15 de dezembro de 1994, e promulgado pelo Decreto no 1.355, de 30 de dezembro de 1994, observados os dados disponíveis e o princípio da razoabilidade; ou

c) mediante laudo expedido por entidade ou técnico especializado.

[11] Nesse sentido, vide Sehn, Solon. Curso de Direito Aduaneiro,  2ª Edição. Forense, 2022. PEREIRA, Cláudio Augusto Gonçalves. Subfaturamento e Subvaloração no Comércio Exterior: Algumas Considerações Conceituais. Revista Direito Aduaneiro, Marítimo e Portuário, São Paulo, v. 10, n. 59, p. 86-95, nov./dez. 2020.

Autor

  • Marcelle Silbiger De Stefano

    Advogada. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). LL.M. em Direito Tributário pelo Insper, com extensão no Mestrado em Direito e Economia pela University of St. Gallen, Suíça. Pesquisadora do NEF-FGV.

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