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A tributação aduaneira pós-Reforma Tributária: soluções e problemas à vista

1. Comentários introdutórios sobre as premissas adotadas

Após anos de tentativas e fracassos, finalmente a Reforma Tributária sobre o consumo foi aprovada pela Emenda Constitucional n° 132/24 (“EC 132”).

Quando este artigo estava sendo preparado, a principal Lei Complementar que institui os novos tributos sobre o consumo (Lei Complementar n° 214/25 – “LC 214”) havia sido recém sancionada, estando os vetos presidenciais ainda pendentes de apreciação pelo Congresso Nacional.

O quadro normativo posto já viabiliza uma assertiva análise de impacto das alterações, embora não se possa desconsiderar a tradição normativa brasileira de ultrapassar os limites legais por ocasião das subsequentes regulamentações, ora criando obrigações ilegais, ora restringindo certos direitos do contribuinte.

Assim, desde logo ressalva-se que estes comentários se baseiam exclusivamente nos textos da EC 132 e da LC 214, com a expectativa que alguns pontos de atenção trazidos sejam considerados na elaboração dos regulamentos da Contribuição sobre Bens e Serviços – CBS e do Imposto sobre Bens e Serviços – IBS.

Dito isso, na jornada dos debates da Reforma Tributária notou-se que a comunidade jurídica e empresarial brasileira por vezes se dividiu entre:

  • os otimistas inveterados, que defendem que a Reforma Tributária é (praticamente) perfeita, sendo a ‘tábua de salvação’ da economia brasileira; e
  • os pessimistas convictos, que reputam que nosso sistema já complexo e disfuncional ficará ainda pior, notadamente durante o período de transição.

A paixão por qualquer dos lados tende a prejudicar a discussão técnica e o juízo crítico, influindo na necessária serenidade para se reconhecer os méritos e os deméritos da Reforma Tributária aprovada. A identificação dos problemas não visa atacar a Reforma Tributária, que está posta e que terá que ser enfrentada, mas diagnosticar pontos para correção e melhoraria do nosso sistema.

Pede-se licença para apresentar uma breve visão sobre alguns dos impactos na tributação aduaneira pós-Reforma Tributária[1], que trará algumas soluções mas também apresentará alguns problemas (novos ou antigos).

Este artigo não se propõe a ser exaustivo, havendo diversos aspectos a serem considerados de acordo com a realidade dos contribuintes e dos setores em que atuam.

Assim, serão analisados basicamente dois aspectos positivos e dois negativos da Reforma Tributária na tributação aduaneira.

2. O copo meio cheio: algumas das soluções trazidas pela Reforma Tributária

2.1. A simplificação do sistema pela unificação de critérios para incidência dos tributos aduaneiros na importação de bens materiais

Um dos elementos da complexidade tributária atual é a multiplicidade de bases de cálculo existentes, que variam de acordo com o tributo aduaneiro incidente.

No que se refere às mercadorias, em linhas gerais atualmente há três bases de cálculo diferentes[2] aplicáveis em uma mesma operação de importação, conforme o tributo devido, sendo um deles especialmente complexo, subjetivo e oneroso.

Além disso, sob uma perspectiva técnica, os fatos geradores dos tributos aduaneiros atuais acontecem em momentos distintos, sendo ora no momento do registro da Declaração de Importação[3], ora quando do desembaraço aduaneiro do bem[4].

A Reforma Tributária, em certa medida, simplificará um pouco o regime de incidência dos tributos aduaneiros dada a consolidação da base de cálculo da CBS e da IBS sobre bens materiais em um único critério[5], assemelhado ao aplicável ao ICMS.

Diz-se assemelhado ao ICMS pois alguns elementos atualmente vigentes foram suprimidos da base de cálculo da CBS e do IBS, como as “despesas aduaneiras” (que cada estado adota um conceito diferente, gerando insegurança jurídica e contencioso). Tal exclusão é relevante e positiva para a redução de contencioso futuro.

Entretanto, a escolha deste critério pelo legislador merece algumas críticas, as quais serão melhor abordadas no tópico seguinte.

Quanto ao momento de ocorrência do fato gerador, a LC 214 também adotou critério assemelhado ao aplicável ao ICMS, mas modernizando a sua terminologia para “liberação dos bens submetidos a despacho para consumo”, tal como atualmente adotado na literatura internacional (substituindo o tradicional e ultrapassado “desembaraço aduaneiro”).

Essas alterações trazem um pouco mais de racionalidade e uniformidade à tributação aduaneira, mas, como se verá no tópico a seguir, ainda traz consigo efeitos negativos ao sistema jurídico.

2.2. A permanência dos principais regimes aduaneiros especiais e de bens de capital, e sua extensão aos tributos estaduais e municipais

Um dos aspectos que mais preocupavam o mercado quando da aprovação da EC 132 era a manutenção (ou não) dos regimes aduaneiros especiais e de bens de capital existentes.

Mais do que incentivos fiscais, os regimes aduaneiros especiais muitas vezes são absolutamente imprescindíveis para a própria viabilidade econômica (e, portanto, existência) de determinados setores econômicos, como é o caso, por exemplo, do setor de petróleo e gás, em relação ao Repetro[6].

A LC 214 instituiu, para fins da CBS e IBS (e, quando o caso, para o Imposto Seletivo – IS), a maior parte dos regimes aduaneiros até então existentes, ora renomeando de acordo com a sua característica essencial (regimes de trânsito[7], depósito[8], permanência temporária[9] e aperfeiçoamento[10]), ora utilizando suas denominações atuais (Repetro).

Também foram mantidos regimes para bens de capital, como o Reporto[11] e Reidi[12], além da criação do Renaval[13] e a instituição de um regime genérico para bens de capital em geral[14].

A manutenção de tais regime aduaneiros especiais e dos bens de capital pode ser considerada uma solução importante para a continuidade e expansão de investimentos, dada a elevada carga tributária brasileira.

Vale mencionar que, sob a perspectiva financeira, a mera possibilidade de registro imediato e integral de créditos da CBS e do IBS não enseja neutralidade plena, pois, tais tributos deveriam ser recolhidos em espécie[15], não sendo sequer admitida a compensação com créditos fiscais.

Assim, ainda que a empresa possa registrar créditos fiscais, sempre haverá desembolso financeiro, ensejando a necessidade de alocação de capital e de financiamento, incorporando custo aos investimentos, inclusive por normalmente envolverem vultosos montantes.

Dentre as soluções positivas conexas à manutenção dos regimes aduaneiros especiais e de bens de capital encontra-se a sua extensão também ao IBS, e, portanto, aos tributos de competência estadual e municipal.

Atualmente os regimes aduaneiros especiais e de bens de capital não resultam necessariamente no mesmo tratamento tributário ao ICMS e ISS, de modo que o contribuinte deve obter outros incentivos paralelos ou mesmo tributar tais operações.

A aplicação das mesmas normas da CBS e para o IBS ensejou, portanto, a extensão de tais regimes também para os tributos estaduais e municipais, tornando o sistema tributário mais homogêneo e racional, tanto sob a perspectiva jurídica quanto econômica.

3. O copo meio vazio: problemas novos e antigos a serem tratados

3.1. A permanência de critérios diferentes para incidência dos tributos aduaneiros

Embora a LC 214 tenha, em princípio, uniformizado as bases de cálculo aplicáveis para fins da CBS e IBS na importação, quando se analisa a tributação aduaneira como um todo constata-se que demos uma volta e paramos basicamente no mesmo lugar de onde saímos.

Isso porque embora a base de cálculo da CBS e do IBS seja uniforme, esta é diferente daquela aplicável para fins do Imposto de Importação (que continua sendo o valor aduaneiro, conforme acordos internacionais assumidos pelo Brasil) e para o Imposto Seletivo (que consiste no valor aduaneiro acrescido do Imposto de Importação, de forma idêntica ao atual IPI[16]).

Ou seja, ao final, o regime tributário brasileiro ainda estabelece três formas distintas de composição de base de cálculo a onerar a mesma operação de importação.

A LC 214 perdeu a oportunidade de simplificar de verdade elegendo o valor aduaneiro como base de cálculo da CBS, IBS e IS, resultando numa harmonização integral com o Imposto de Importação e com a boa prática internacional.

Também há severas críticas ao critério eleito para a definição da base de cálculo da CBS e do IBS, assemelhado ao ICMS atual, que, além de mais oneroso, ainda traz consigo diversos elementos questionáveis à luz dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.

A esse propósito recomendo fortemente a leitura do artigo “IBS/CBS-Importação: A Base de Cálculo do ICMS Contra-Ataca”, elaborado pelo sempre sagaz Thales Belchior, publicado nesta mesma revista (link[17]).

Quanto ao momento de ocorrência do fato gerador na importação, embora o critério aplicável à CBS, IBS e Imposto Seletivo seja uniforme, este destoa daquele aplicável para o Imposto de Importação (registro da Declaração de Importação).

Deste modo, permanecem sendo aplicáveis os mesmos atuais dois critérios adotados.

3.2. O ‘destinatário final’ e a potencial retomada de conflitos de competência na importação

Um dos aspectos que sempre suscitou debates e contencioso na importação de bens é a definição do ‘local da operação’ e a sujeição ativa para exigir o ICMS.

Um dos principais motivadores de questionamentos sobre o tema se refere ao uso de incentivos fiscais do ICMS, que, em razão da evidente vantagem financeira e competitiva, induzia os contribuintes a buscarem modelos mais eficientes para seus negócios.

Vale relembrar que os incentivos fiscais de ICMS, na sua maioria, eram manifestamente inconstitucionais até a edição da Lei Complementar n° 160/17, sendo concedidos pelos mesmos estados que glosavam os créditos em situação similar, sobrando a conta ao contribuinte.

Pois bem, o modelo adotado pela Reforma Tributária, em tese, esvazia esse direcionador, pois (i) há limitação para a concessão de incentivos fiscais e (ii) a tributação no destino retira a própria competência legislativa do estado para conceder incentivos fiscais.

Entretanto, considerando que incidem também tributo estadual e municipal, e que a alíquota depende do estado em que ocorre juridicamente a operação, é necessário estabelecer um critério para prevenir conflitos de competência, visando trazer previsibilidade e segurança jurídica aos contribuintes.

Dado o histórico de litigiosidade sobre o tema, seria fundamental haver uma definição clara de ‘local da importação’ para que não se perpetue o atual ambiente de contencioso do ICMS.

A LC 214, neste propósito, estabeleceu que na importação de bens materiais, o ‘local da importação’ será o “local da entrega dos bens ao destinatário final”[18].

A ausência de uma definição clara sobre o termo ‘destinatário final’ pode conduzir a um novo capítulo de conflitos de competência entre os estados, dado que, em muitas situações, pode haver interpretações diferentes de seu conteúdo.

O termo ‘destinatário’ estabelecido na LC 214/25 corresponde ‘aquele a quem for fornecido o bem ou serviço, podendo ser o próprio adquirente ou não’, sendo, portanto, eminentemente físico.

Quando se projeta a aplicação de tal regra em diversas estruturas operacionais e logísticas, há um risco relevante de interpretações distintas, que conduziriam à aplicações diferentes das parcelas estadual e municipal do IBS e bitributação.

Apenas a título de exemplo, indicam-se alguns cenários (não exaustivos) que podem suscitar esse tipo de controvérsia:

  1. Importação com remessa para centro de distribuição da própria empresa, para transferência a estabelecimentos:
    1. revendedores varejistas;
    1. industriais para uso como insumo (especialmente quando houver mais de um estabelecimento industrial).
  2. Importação com remessa direta das mercadorias da repartição aduaneira:
    1. Ao cliente do importador;
    1. Para armazém geral, para posterior remessa direta a cliente do importador.
  3. Critério para definição do ‘destinatário final’ no caso de:
    1. Empresas locadoras de veículos (com filiais espalhadas em várias cidades); e
    1. Companhias aéreas (com filiais espalhadas em várias cidades).

Vale destacar que há ainda um elemento de complexidade associado aos tempos e movimentos da operação, pois o IBS deverá ser calculado e recolhido no momento da liberação do bem da repartição aduaneira, e, neste momento, o ‘destinatário final’ poderá ainda ser desconhecido.

Assim, a atribuição da sujeição ativa do IBS ao estado e município de localização do ‘destinatário final’ da importação pode ensejar grave insegurança jurídica, podendo até aumentar o contencioso e a litigiosidade acerca do tema.

3. Conclusão

Acima foram indicados apenas alguns exemplos dos impactos da Reforma Tributária na tributação aduaneira, havendo diversos outros aspectos a serem considerados pelos contribuintes de acordo com os seus negócios.

Assim, embora haja algum nível de consenso que a Reforma Tributária era necessária devido à distopia atual do ordenamento jurídico, instituição da CBS, IBS e IS requer a atenção dos contribuintes para evitar riscos.

Em uma análise mais geral, nota-se que há diversas soluções trazidas pela Reforma Tributária à tributação aduaneira, mas, também algumas das alterações podem ser insuficientes para reduzir a complexidade tributária, ou mesmo aumentar o risco de questionamentos sobre alguns aspectos que já se encontravam em fase de pacificação.

Recomenda-se que as obscuridades sejam esclarecidas na regulamentação infralegal a ser expedida pela União e pelo Comitê Gestor do IBS, observado, naturalmente, os limites constitucionais e legais impostos pela EC 132 e LC 214.


[1] Embora o Imposto de Importação componha a tributação aduaneira, este não foi objeto de alteração pela Reforma Tributária.

Apesar disso, serão feitos alguns comentários sobre o seu regime de incidência na análise da tributação na importação de bens materiais como um todo.

[2] No caso do Imposto de Importação e das contribuições para o PIS e Cofins na importação, a base de cálculo é o valor aduaneiro, tal como definido pelo Acordo de Valoração Aduaneira do General Agreement on Tariffs and Trade (AVA-GATT).

Para fins do IPI, a base de cálculo corresponde tanto ao valor aduaneiro como o próprio valor do Imposto de Importação.

Quanto ao ICMS, a base de cálculo é bastante abrangente, compreendendo o valor aduaneiro acrescido de todos os tributos incidentes na importação, bem como demais taxas, despesas e encargos associados à operação de importação.

[3] Aplicável ao Imposto de Importação e às contribuições para o PIS e Cofins.

[4] Aplicável ao IPI e ao ICMS.

[5] Art. 69 da LC 214.

[6] Art. 93 da LC 214.

[7] Art. 84 da LC 214.

[8] Art. 85 da LC 214.

[9] Art. 88 da LC 214.

[10] Art. 90 da LC 214.

[11] Regime Tributário para Incentivo à Modernização e à Ampliação da Estrutura Portuária.

Art. 105 da LC 214.

[12] Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento da Infraestrutura.

Art. 106 da LC 214.

[13] Regime Tributário para Incentivo à Atividade Naval.

Art. 107 da LC 214.

[14] Art. 108 da LC 214.

[15] Art. 76, § 5° da LC 214.

[16] Esta base de cálculo é aplicada quando a alíquota do Imposto Seletivo for ad valorem. Nos casos de alíquota fixa, a base de cálculo será a unidade de medida.

[17]https://institutoaduaneiro.com.br/ibs-cbs-importacao-a-base-de-calculo-do-icms-contra-ataca/

[18] Art. 68 da LC 214.

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