Importações terceirizadas de bens controlados pela ANVISA: o falso dilema entre a legislação regulatória e aduaneira

Marcelle Silbiger De Stefano e Carla Bacchin Fernandes de Moraes Cox*

A importação de produtos sujeitos à vigilância sanitária no Brasil é regida por normas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (“ANVISA”) e da Receita Federal do Brasil (“RFB”). Enquanto a ANVISA é a autoridade competente para dispor sobre a importação e comercialização de tais produtos (art. 7º da Lei 9.782/99), à RFB cabe fiscalizar e controlar as operações de comércio exterior (art. 237 da Constituição Federal).

Não raro, as normas emitidas por tais órgãos acabam gerando conflitos de interpretação. Exemplo comum são os casos de classificação fiscal, como já tivemos oportunidade de analisar em outro artigo publicado nesta coluna[1]. Por vezes, tais conflitos são apenas aparentes.

Recentemente, contudo, tivemos uma situação bastante peculiar, que parece ter surgido de um suposto conflito entre as normas regulatórias e aduaneiras: sob o pretexto de suposto alinhamento à legislação aduaneira, a ANVISA limitou a realização de “importações terceirizadas” em razão da interpretação (errônea) das modalidades de importação previstas na legislação aduaneira.

No âmbito da ANVISA, a Resolução da Diretoria Colegiada (“RDC”) 81/2008 estabelece os requisitos sanitários para a importação de produtos sujeitos à vigilância sanitária. No capítulo VII, item 1, a norma estabelece o conceito de “importações terceirizadas”, entendidas como aquelas realizadas:

  • Entre empresas regularizadas junto à ANVISA com AFE (Autorização de Funcionamento);
  • Mediante intermediação previamente definida, e
  • Por órgãos públicos e organismos internacionais.

A norma permite que a empresa detentora da regularização (registro, cadastro, notificação etc.) de um produto sujeito à Vigilância Sanitária autorize a importação por terceiros (que deverão estar devidamente licenciados), desde que haja uma declaração formal (“DDR”) com requisitos específicos, como validade jurídica, prazo máximo de 90 dias, assinatura por responsáveis legais e técnicos, e compromisso com a legislação sanitária.

Ao conceder a DDR ao terceiro, o titular da regularização não realiza o procedimento de importação, nem distribui os produtos no mercado local, já que essas atividades serão conduzidas exclusivamente pelo terceiro. Isto é, o DDR é apenas uma autorização para que terceiro importe produtos cuja regularização perante a ANVISA pertence a outra empresa.

Sob a ótica sanitária, essa autorização para importação por terceiros não significa a isenção de responsabilidades por parte da empresa detentora da regularização, que continuará sendo legalmente responsável pelo produto no Brasil, ainda que os procedimentos de importação e distribuição sejam realizados exclusivamente pelo terceiro por ela autorizado. Nesse sentido, a depender do problema sanitário, a ANVISA teria competência para autuar e sancionar tanto a empresa importadora, quanto a empresa detentora da regularização.

Quando do licenciamento da importação, o terceiro – detentor da DDR – informa à ANVISA o CNPJ da empresa detentora do registro e a cópia da DDR, a fim de demonstrar a sua autorização para importar os produtos e a legitimidade da importação da perspectiva regulatória.

Recentemente, contudo, importadores que atuam mediante DDR foram surpreendidos com a notícia de que, a partir da migração para a Declaração Única de Importação (“DUIMP”), não haveria mais a possibilidade de realizar a importação terceirizada mediante DDR.

Segundo as informações prestadas pela ANVISA em evento sobre o tema[2], as “importações terceirizadas” de produtos destinados à comercialização não mais seriam aceitas. A razão para tanto teria origem na legislação aduaneira emitida pela RFB, que apenas permitiria que, no entender da ANVISA, limitaria a realização das “importações terceirizadas” às modalidades de conta e ordem e encomenda. A importação direta, por sua vez, ficaria restrita à própria empresa detentora da regularização, às unidades de saúde, para seu uso exclusivo, e às pessoas físicas (para uso próprio).

Tal comunicação gerou ampla preocupação no setor, considerando que muitas empresas operam ou estabelecem parcerias com terceiros por meio do modelo de importação via DDR — utilizado inclusive como estratégia para ampliar as possibilidades de importação e distribuição de produtos no Brasil. A restrição a esse modelo comprometeria a operação de empresas que atuam regularmente no País há anos, além de inviabilizar a continuidade e o desenvolvimento de parcerias comerciais voltadas à importação e distribuição, restringindo o acesso da população a diversos produtos.

Porém, diferentemente de outras questões envolvendo aparente conflito de normas entre a ANVISA e a RFB que efetivamente exigem um esforço interpretativo e até mesmo uma ponderação de princípios, a limitação da realização de importações terceirizadas sob o pretexto de alinhamento à legislação aduaneira não passa de uma confusão de conceitos que criou um falso dilema (e um verdadeiro stress) na indústria.

Segundo a legislação aduaneira, há duas modalidades de importação: a direta e a indireta, sendo que esta última compreende a importação por conta e ordem e a importação por encomenda.

A importação direta é a forma comum de importação, de acordo com a qual o importador atua em nome próprio perante o exportador e a RFB (não existindo qualquer vinculação, sob a ótica aduaneira, entre a importação direta e a empresa importadora ser a detentora da regularização do produto sujeito à vigilância sanitária). A importação é feita por sua conta e risco e os produtos são importados no interesse do importador. A destinação destes produtos no mercado interno – uso e consumo, incorporação ao ativo, revenda – é irrelevante e diz respeito única e exclusivamente ao importador.

Há duas exceções à importação direta, comumente conhecidas como modalidades de “importação indireta”: (i) a importação por conta e ordem de terceiros e (ii) a importação por encomenda. Ambas as modalidades de importação indireta são regidas pela Instrução Normativa RFB nº 1.861/18 (“IN 1.861”).

Na importação por conta e ordem de terceiros, o importador promove o despacho aduaneiro de importação de mercadorias adquiridas por outra entidade (“adquirente”), em razão de contrato de prestação de serviços previamente firmado[3]. O adquirente realiza a transação comercial de compra e venda da mercadoria com o exportador, em nome próprio e com recursos próprios, de modo que a fatura comercial é emitida contra o adquirente. O importador é contratado apenas para promover o despacho aduaneiro de importação, podendo prestar outros serviços relativos à cotação de preço e intermediação comercial, por exemplo.

Já na importação por encomenda, o importador promove, em seu nome e com recursos próprios, o despacho aduaneiro de importação de mercadoria para revenda a encomendante predeterminado[4]. Diferentemente do importador por conta e ordem, o importador por encomenda negocia a compra com o exportador e arca financeiramente com a importação. O encomendante é quem contrata o importador para realizar a compra e venda da mercadoria estrangeira e a posterior revenda.

Como se observa, a importação por conta e ordem de terceiros e a importação por encomenda são (as únicas) modalidades típicas de importação indireta, que devem cumprir com os requisitos acima indicados para serem assim qualificadas.

Assim, numa importação realizada por conta de terceiros (i.e., financiada por terceiros), em que o terceiro não participa e não assume riscos relativos à importação, os quais são arcados exclusivamente pelo importador, não há importação por conta e ordem. Da mesma forma, a importação de determinada mercadoria que, após processo de industrialização é destinada a clientes específicos não pode ser considerada feita por encomenda de tais clientes, uma vez que a “revenda” da mercadoria importada é condição sine qua non para a tipificação da importação por encomenda.

Nos casos em que a importação não seja enquadrada como importação por conta e ordem ou por encomenda, estaremos diante de uma importação direta. Em outras palavras: as modalidades de importação indireta são típicas e exceções à regra geral da importação direta. Não há, na legislação vigente, “derivações” ou “adaptações” das importações indiretas. Assim, não estando presentes os requisitos legais à qualificação das importações indiretas, a única opção que resta ao importador é declará-la como direta.

Retomando a questão da “importação terceirizada”, torna-se evidente que não há qualquer fundamento jurídico para vincular tal conceito regulatório às importações por encomenda ou conta e ordem. A existência de um terceiro vinculado à importação e/ou à mercadoria importada não deve ser vista isoladamente como indício ou causa de importação por encomenda ou por conta e ordem. Tratando-se de importações típicas e ausentes os requisitos necessários à sua qualificação, estar-se-á diante de uma importação direta.

Assim, da perspectiva aduaneira, uma empresa que importe produtos sujeitos ao controle da ANVISA, que negocie com o exportador, financie a importação com recursos próprios e distribua os produtos no mercado local estará praticando uma importação direta, independentemente de possuir ou não a titularidade do registro dos produtos perante a ANVISA. Seja a importação realizada pelo detentor da regularização, seja realizada por terceiro mediante DDR, a importação deve ser considerada como direta para fins aduaneiros.

Felizmente, após ampla movimentação do setor, a questão parece estar caminhando para uma solução com a publicação[5] do Manual da ANVISA de Importação por DUIMP, o qual passou a prever que a “categorização da importação” deve seguir os conceitos de importação direta, por conta e ordem ou por encomenda, nos termos da legislação aduaneira. Segundo o Manual, produtos regularizados no Sistema Nacional de Vigilância Sanitária podem ser importados em qualquer dessas modalidades, sendo que, na importação direta, incluiu-se a possibilidade de importação pela empresa detentora da DDR.

Apesar de o caso das “importações terceirizadas” ter sido teoricamente resolvido (ao menos por enquanto), situações como essa reforçam a necessidade da devida compreensão dos conceitos de importação por encomenda e conta e ordem previstos na legislação aduaneira, sob pena de interpretações equivocadas que causam insegurança jurídica e complexidades desnecessárias.

É importante ter em mente que a discussão não envolve a mera definição formal quanto ao tipo de importação adotado e declarado à RFB. Na prática, questionamentos quanto à modalidade de importação ensejam quase que automaticamente a acusação de interposição fraudulenta de terceiros, infração sujeita à pena de perdimento ou à multa equivalente ao valor aduaneiro, caso as mercadorias já tenham sido revendidas, consumidas ou não possam ser localizadas. Não raro, tais autuações por vezes não se sustentam em razão da falta de comprovação da ocorrência de fraude ou simulação na ocultação do real importador, requisito essencial à tipificação da conduta[6].

Portanto, ausentes os requisitos legais à qualificação da importação por encomenda ou conta e ordem, a operação deve seguir a regra geral e ser qualificada como importação direta. Apesar de tal conclusão padecer de certa obviedade, não custa reforçá-la, principalmente para que as exceções não venham a ser tratadas como regra.


[1] https://institutoaduaneiro.com.br/divergencias-de-classificacao-fiscal-de-produtos-controlados-a-complexa-e-crescente-disputa-entre-a-rfb-e-os-orgaos-anuentes/

[2] https://www.youtube.com/watch?v=r7wfVbvIxgE (minuto 1:28:36 – 1:30:45).

[3] Art. 2º da IN 1.861.

[4] Art. 3º da IN 1.861.

[5] https://www.gov.br/anvisa/pt-br/centraisdeconteudo/publicacoes/portos-aeroportos-e-fronteiras/guias-e-manuais/manual-duimo_versao-1-0.pdf/view

[6] Sobre o tema, vide STEFANO, Marcelle Silbiger De. Fraude no comércio exterior: a interposição fraudulenta de terceiros. São Paulo: Almedina, 2020.


* Marcelle Silbiger De Stefano é advogada. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). LL.M. em Direito Tributário pelo Insper, com extensão no Mestrado em Direito e Economia pela University of St. Gallen, Suíça. Pesquisadora do NEF-FGV.

*Carla Bacchin Fernandes de Moraes Cox é advogada com atuação na área de Direito Público e Direito Regulatório, com foco na área de saúde/sanitária, com atuação perante a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA , Comissão Nacional de Ética em Pesquisa – Conep, Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos – CMED, Ministério da Agricultura, Secretarias Estaduais de Saúde e vigilâncias sanitárias municipais. Membro da Comissão de Bioética e Direito e da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB/SP. Especializada em Direito Público pela Escola Paulista de Magistratura e em Direito Regulatório Sanitário pela Faculdade Oswaldo Cruz


*Este artigo reflete as opiniões do (a) autor (a), e não do Instituto de Pesquisas em Direito Aduaneiro – IPDA.
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